DA HARMONIA


REPUBLICAÇÃO - Escrita no crepúsculo de 16 de fevereiro de 2012, véspera do carnaval.   
  
 
 
     Houve um tempo, há muito, muito tempo, quando eu ainda era jovem, quando ainda era muito virgem de mim, tempo no qual eu achava que a harmonia consistia em algo simples, algo natural como uma planta que, devidamente regada, crescia sem problemas. Eu era boa, naturalmente boa - ou assim me julgava - e tudo estava bom e estava tudo certo entre eu e os meus pares - não havia ímpares - no meu mundo. 
     Os escuros vieram, muito fundos e conheci um universo inóspito em que quase tudo se tornou Outro e desconhecido e desconhecível - eu, sobretudo, assim como quase tudo. Duvidei da minha face, duvidei do que me julgava ser, percebi que a grande maioria dos seres era de ímpares, não de pares, e percebi que eu não era benquista por alguns desses, muitíssimo pouco benquista e constatei que me era impossível compreender devidamente tal fato, eu, que jamais sonhara nem tentara, intencionalmente, plantar qualquer erva má em nenhum de seus respectivos jardins. A vida tornou-se um Mistério Escuro. E os escuros contaminaram tanto tudo que nublaram até os espelhos meus e os dos poucos pares que restaram no meu pequeno universo pessoal.
     Parece-me que, ainda que os tempos escuros não tenham, em termos objetivos, sofrido alteração, em algum lugar de mim está a brotar e a se expandir, como corpo de embrião, o sonho de um Tempo Novo. Ainda apenas um sonho, o sonho, quase a antevisão de um tempo em que se possa viver outro sentido de harmonia, após se ter dado a volta-ao-mundo quase só de desarmonias, de desarmonias das mais múltiplas naturezas. Apenas um sonho, mas, sinto que eu ainda terei de volta a respiração, a respiração plena, a respiração plena da qual há muito não me tem sido dado usufruir.