Morrer numa redinha
1. Voei pela primeira vez num modesto teco-teco. Foi no sertão do Ceará, meados do século 20. Durante alguns minutos, eu meninote, sobrevoei, olhos esbugalhados, entre apavorado e surpreso, minha cidade, o Iguatu, no sertão cearense. Suportei, com o coração querendo sair pela boca, os voos rasantes que o experiente piloto fazia, comprovando sua irretocável competência.
2. A pequena e frágil aeronave era do Aeroclube de Fortaleza; e o piloto, se não me falha a já fatigada memória, chamava-se Celso, um sujeito simpático, de farda caqui e óculos Ray Ban, aros dourados. É provável que os mais velhos da cidade ainda se lembrem dele. Estou me reportando ao que aconteceu nos anos 1940. Por isso, todos os equívocos, suplico, sejam relevados.
3. Neste meu passeio por este velho planeta, e que já se arrasta por muito mais de meio século, centenas de vezes estive a bordo dos mais diferentes tipos de aviões; tanto em voos domésticos como em voos internacionais.
4. A história, porém, é uma só: se durante o voo rola uma cervejinha, surpreendentemente me descontraio, porque tomo todas. Chego a abrir intermináveis e desinteressantes papos com o passageiro da poltrona ao lado, que logo descobre que não sou tão corajoso como tento parecer.
A propósito, meu colega de Faculdade e velho amigo João Carlos Teixeira Gomes, escritor e jornalista baiano, escreveu que "todo homem se julga imortal - até entrar num avião" em uma crônica publicada no seu livro O Telefone dos Mortos.
5. Se não pinta uma cervejinha, viajo literalmente mudo! Ivone, minha mulher, companheira de tantas e belíssimas viagens aéreas, sofre horrores ao me ver afogado numa profunda angústia, a 10 mil metros de altura.
Rezo decolando, durante o voo continuo rezando, e na hora do pouso, faço a oração final de agradecimento.
6. O diabo é que alguns de meus voos aconteceram dias depois de um desastre de avião de grande repercussão. Lembro dois. Me preparava para cortar o Atlântico, rumo à Europa, quando caiu, na mesma rota que eu teria que atravessar, aquele Airbus da Air France - o voo 447, matando 228 pessoas. Quase desisti do passeio.Mais recentemente, pronto para voar para São Paulo, eis que sou surpreendido com a queda do Cessna que matou Eduardo Campos, candidato à Presidência da República. Tremi!
7. Uma coisa, porém, diferencia os que morrem em desatres de avião: todos viram notícias; desde a mais aplaudida celebridade ao mais desconhecido dos mortais. É o que o Carlos Drummond de Andrade diz, com precisão e uma pontinha de romantismo, no último verso do seu longo poema Morte no Avião: "Caio verticalmente e me transformo em notícia".
8. Não é num desastre de avião que desejo morrer, transformando-me, como disse o poeta, em notícia. Quero "desaparecer" a bordo de uma redinha cearense, tomando uma cervejinha gelada, e ouvindo uma canção qualquer do Orlando Silva. E só depois dos 100 anos.
1. Voei pela primeira vez num modesto teco-teco. Foi no sertão do Ceará, meados do século 20. Durante alguns minutos, eu meninote, sobrevoei, olhos esbugalhados, entre apavorado e surpreso, minha cidade, o Iguatu, no sertão cearense. Suportei, com o coração querendo sair pela boca, os voos rasantes que o experiente piloto fazia, comprovando sua irretocável competência.
2. A pequena e frágil aeronave era do Aeroclube de Fortaleza; e o piloto, se não me falha a já fatigada memória, chamava-se Celso, um sujeito simpático, de farda caqui e óculos Ray Ban, aros dourados. É provável que os mais velhos da cidade ainda se lembrem dele. Estou me reportando ao que aconteceu nos anos 1940. Por isso, todos os equívocos, suplico, sejam relevados.
3. Neste meu passeio por este velho planeta, e que já se arrasta por muito mais de meio século, centenas de vezes estive a bordo dos mais diferentes tipos de aviões; tanto em voos domésticos como em voos internacionais.
4. A história, porém, é uma só: se durante o voo rola uma cervejinha, surpreendentemente me descontraio, porque tomo todas. Chego a abrir intermináveis e desinteressantes papos com o passageiro da poltrona ao lado, que logo descobre que não sou tão corajoso como tento parecer.
A propósito, meu colega de Faculdade e velho amigo João Carlos Teixeira Gomes, escritor e jornalista baiano, escreveu que "todo homem se julga imortal - até entrar num avião" em uma crônica publicada no seu livro O Telefone dos Mortos.
5. Se não pinta uma cervejinha, viajo literalmente mudo! Ivone, minha mulher, companheira de tantas e belíssimas viagens aéreas, sofre horrores ao me ver afogado numa profunda angústia, a 10 mil metros de altura.
Rezo decolando, durante o voo continuo rezando, e na hora do pouso, faço a oração final de agradecimento.
6. O diabo é que alguns de meus voos aconteceram dias depois de um desastre de avião de grande repercussão. Lembro dois. Me preparava para cortar o Atlântico, rumo à Europa, quando caiu, na mesma rota que eu teria que atravessar, aquele Airbus da Air France - o voo 447, matando 228 pessoas. Quase desisti do passeio.Mais recentemente, pronto para voar para São Paulo, eis que sou surpreendido com a queda do Cessna que matou Eduardo Campos, candidato à Presidência da República. Tremi!
7. Uma coisa, porém, diferencia os que morrem em desatres de avião: todos viram notícias; desde a mais aplaudida celebridade ao mais desconhecido dos mortais. É o que o Carlos Drummond de Andrade diz, com precisão e uma pontinha de romantismo, no último verso do seu longo poema Morte no Avião: "Caio verticalmente e me transformo em notícia".
8. Não é num desastre de avião que desejo morrer, transformando-me, como disse o poeta, em notícia. Quero "desaparecer" a bordo de uma redinha cearense, tomando uma cervejinha gelada, e ouvindo uma canção qualquer do Orlando Silva. E só depois dos 100 anos.