E o dortorzinho? Por onde anda?
Eu sei aonde anda meu doutor...
Eu estava aqui pensando em como começar a escrever sobre um ocorrido esta semana no consultório. Pensei no que senti e em muitas situações que já participei, mas não conseguia colocar no papel - quer dizer, no computador...
E chegou um texto enviado por uma “amiga – paciente” e eu vi tudo claramente.
Antes de ontem eu vinha do banco, muito pau da vida com meus problemas. Passei por pessoas estranhas e suadas na multidão e observei que são aquelas pessoas que fazem o mundo rodar e que seguram a estrutura dos mais ricos e privilegiados – os trabalhadores, pessoas com muito o que fazer e pouco tempo pra realizar.
Eu, naquele momento, era mais uma; uma igual e fazia parte desta roda viva. Por incrível que pareça, esperava chegar rápido ao consultório pra trabalhar, porque, atualmente, trabalhar tem sido mais repousante do que pensar nos meus problemas insolúveis.
Lá eu iria esquecer de mim e pensar em outras coisas. Em doenças? Sim! Mas, estaria imune a mim mesma.
Tomei energia com as pacientes e tudo corria bem, apesar de estar cheio de gente e todo mundo cansado pela demora nas consultas.
Que posso fazer? Eu tenho que dar jeito em tudo quanto é problema que aparece! Não tem como ser rapidinha no meio de tanto drama.
Até que tudo estava em paz. Elas riam lá fora na sala de espera - o que estariam falando? - e eu lá dentro trabalhando e raciocinando como um robô.
Falar uma coisa, escrever outra, pensar sobre algo totalmente diferente do que falo e escrevo, isso leva anos... Aprendi até a escrever sem olhar para o papel. Por isso é que jamais conseguiria trabalhar com um computador na frente.
Foi aí que ouvi uma mulher gritar: “Isso é um absurdo! Parece até hospital público!”.
Gostaria de saber se esta pessoa poderia encontrar um lugar como o que atendo, com cafezinho, água gelada, tudo perfeitamente esterilizado, televisão, ar refrigerado e todo o conforto, numa instituição pública.
Aparece minha secretária com dois olhos arregalados, toda assustada porque uma senhora, que acompanhava sua filha (a paciente) estava criando o maior rebú pela demora e queria invadir minha sala (eu estava examinando uma paciente) para reclamar e me apressar.
Não deu nem tempo para eu orientar minha secretária a lhe convidar a sair, pois a senhora saiu batendo a porta com toda força, enquanto a filha pedia para ela se acalmar, porque desejava esperar por mim.
Depois eu soube dos detalhes. A pessoa disse em alto e bom som, para todas ouvirem, que sua filha tinha prioridade em ser atendida porque pagaria consulta particular, enquanto as outras usavam plano de saúde para serem atendidas...
Ainda bem que eu nem apareci na porta. Quem me conhece sabe muito bem do que eu seria capaz.
Também soube que uma paciente, advogada, que também estava há horas esperando, saiu no corredor para falar umas coisinhas para a mulher. Das coisinhas, eu soube que lhe recomendou um veterinário...
Esta paciente que me defendeu nem ficou para a consulta devido à falta de tempo. Ela vai voltar outra hora, pois é paciente de muitos e muitos anos.
Aquilo me deixou extremamente nervosa (mais do que ando) e tentava esconder da paciente, que naquele momento, estava deitada para eu examinar suas mamas.
O exame era automático. Minhas mãos trabalhavam, minha cabeça estava atenta ao que fazia, mas meu pensamento girava em torno desta droga de vida difícil que levo , como a maioria dos médicos.
De repente, sinto uma mãozinha quente passando no meu braço e descubro que a senhora me fazia um carinho suave, enquanto me olhava com bondade. Foi um instante. Eu passei a mão esquerda na sua cabeça e examinava a mama com a outra, num gesto de compreensão mútua e de parceria.
Por coincidência, naquele dia, só havia gente que já sofreu na vida, tanto física quanto emocionalmente, e eu já tivera participado de alguns fatos de suas vidas.
Destoou aquela mulher nervosa naquele lugar. Ali não se vê diferença de raça, religião, condição social, nem qualquer idiotice deste tipo. Ali eu sou o meu melhor e participo do melhor e pior de todo mundo, respeitando as diferenças e as amarguras do destino.
Nem sempre a gente consegue fazer isso e precisamos, às vezes, de ajuda, muita ajuda espiritual, emocional e do amor das pessoas.
Somos frágeis,nós médicos, principalmente por termos noção de como a vida pode acabar e como ela pode perdurar a custa de muito sofrimento. E, se nos diferenciamos do resto dos profissionais, é apenas por este detalhe. Precisamos sempre nos reciclar emocionalmente.
Por estas e por outras fiz a loucura de parar um ano de trabalhar por não ter menor condição de atender ninguém. Pago caro até hoje por isso, muito caro.
Aquele gesto de carinho súbito me fez voltar ao passado e me lembrei de algumas situações que me deixaram emocionada. Coisas simples, mas, tocantes.
Primeira historinha :
O Heitor, médico de minha mãe, que participou dos últimos anos de sua vida e foi o responsável por ela ter melhor qualidade de sobrevivência, um dia, no CTI, enquanto ela estava presa a uma máquina de hemodiálise, saindo de um coma, chegou para fazer sua visita de rotina todo cheiroso e com a roupa branquinha que mais parecia um anjo (pelo menos na cabeça de minha mãe). Minha mãe o chamava de “Dr Heitor Colírio Castro Júnior”.
Ela o elogiou e o convidou para deitar ao seu lado no leito do hospital, com seu jeito maluquete, que era de costume. E o pirado deitou!
Este mesmo pirado enfrentou os melhores médicos do Rio de Janeiro para impor suas condutas e fazer valer sua opinião. Era e é um médico jovem, mas muito capaz e não deixa pingos fora dos “is”. Ele põe muito médico de nome no chinelo e, no entanto, sabe a hora de ser criança e deitar ao lado de uma doente terminal para fazer sua vontade, se levantar e tomar condutas sobre a vida e a morte.
Segunda historinha:
Aniversário de minha mãe. Ela estava num quarto da semi-intensiva, cheia de catéteres no corpo. Um enfiado no peito (subclávia) para o soro e as medicações, outro que drenava a secreção do fígado para uma bolsa externa (que não poderia ser nunca retirado), um outro dentro da veia femoral, na perna, para a hemodiálise e outro no braço. Todos de acesso profundo. Além de um monitor cardíaco preso no tórax para avisar quando o seu coração começasse a descontrolar os batimentos. A qualquer momento ela poderia ter uma arritmia e fazer uma parada cardíaca, como eu já tinha presenciado bem na minha frente.
Heitor apareceu para a examinar, trazendo um enorme bolo e recomendando apenas comer um pouquinho.
Ela usava insulina por conta do diabetes, não podia comer doces.
“Mas, para que serve a insulina ultra-rápida? Para as crianças diabéticas fazerem arte! Então, por que não? Come-se o bolo e tacamos insulina na Dona Glória...”, disse ele.
Foi o bolo mais bem comido da história...
Naquele dia ela teve febre, com tremores por bacteremia (a primeira reação do corpo a uma infecção bacteriana no sangue). Daí, ela começou a descompensar o seu frágil coração. Eu fiquei atordoada porque os médicos de plantão não queriam a levar de novo para o CTI e apenas me recomendaram que quando ela começasse a “dissaturar”, para eu avisar.
O termo não existe, mas quer dizer em medicina, que, quando ela começasse a ficar sem oxigênio e roxinha, eu deveria acionar o CTI.
Enlouqueci de tanto nervoso e chamei Heitor de volta.
Ele apareceu como um guerreiro, ordenou que tirassem todos os tubos possíveis de serem retirados e fossem colocados novos. A bactéria que entrou em seu corpo devia ter vindo de algum tubo contaminado. Isso gerou equipes de cirurgiões vasculares, um grupo enorme de gente trabalhando em pleno domingo de noite.
Minha mãe, neste dia, sofreu muito. Ninguém leigo imagina e nem vou dar mais detalhes.
Eu estava esgotada, como sempre, depois de tudo resolvido. Deitei na minha cama (uma poltrona ao lado de seu leito) e dormi até amanhecer (faltava pouco).
De manhã eu acordo com um bilhete do Heitor no meu peito. Ele já tinha passado lá e já tinha brigado com meia dúzia de médicos idiotas.
O bilhete dizia mais ou menos assim:
“Leila, eu já tomei as condutas do dia. Apesar de sua preocupação, decidi não lhe acordar. Qualquer coisa, me ligue.
PS: Cara, você dorme feio pacas!“.
Pois é, eu tenho milhares de historinhas. Coisas que fariam até Jesus Cristo duvidar. Absurdos de médicos que acham que cagam cheiroso.
Ainda bem que existem Heitores e Leilas por aí - odiados, invejados, massacrados e pouco respeitados, mas sendo GENTE de verdade.
Eu sei aonde anda meu doutor...
Eu estava aqui pensando em como começar a escrever sobre um ocorrido esta semana no consultório. Pensei no que senti e em muitas situações que já participei, mas não conseguia colocar no papel - quer dizer, no computador...
E chegou um texto enviado por uma “amiga – paciente” e eu vi tudo claramente.
Antes de ontem eu vinha do banco, muito pau da vida com meus problemas. Passei por pessoas estranhas e suadas na multidão e observei que são aquelas pessoas que fazem o mundo rodar e que seguram a estrutura dos mais ricos e privilegiados – os trabalhadores, pessoas com muito o que fazer e pouco tempo pra realizar.
Eu, naquele momento, era mais uma; uma igual e fazia parte desta roda viva. Por incrível que pareça, esperava chegar rápido ao consultório pra trabalhar, porque, atualmente, trabalhar tem sido mais repousante do que pensar nos meus problemas insolúveis.
Lá eu iria esquecer de mim e pensar em outras coisas. Em doenças? Sim! Mas, estaria imune a mim mesma.
Tomei energia com as pacientes e tudo corria bem, apesar de estar cheio de gente e todo mundo cansado pela demora nas consultas.
Que posso fazer? Eu tenho que dar jeito em tudo quanto é problema que aparece! Não tem como ser rapidinha no meio de tanto drama.
Até que tudo estava em paz. Elas riam lá fora na sala de espera - o que estariam falando? - e eu lá dentro trabalhando e raciocinando como um robô.
Falar uma coisa, escrever outra, pensar sobre algo totalmente diferente do que falo e escrevo, isso leva anos... Aprendi até a escrever sem olhar para o papel. Por isso é que jamais conseguiria trabalhar com um computador na frente.
Foi aí que ouvi uma mulher gritar: “Isso é um absurdo! Parece até hospital público!”.
Gostaria de saber se esta pessoa poderia encontrar um lugar como o que atendo, com cafezinho, água gelada, tudo perfeitamente esterilizado, televisão, ar refrigerado e todo o conforto, numa instituição pública.
Aparece minha secretária com dois olhos arregalados, toda assustada porque uma senhora, que acompanhava sua filha (a paciente) estava criando o maior rebú pela demora e queria invadir minha sala (eu estava examinando uma paciente) para reclamar e me apressar.
Não deu nem tempo para eu orientar minha secretária a lhe convidar a sair, pois a senhora saiu batendo a porta com toda força, enquanto a filha pedia para ela se acalmar, porque desejava esperar por mim.
Depois eu soube dos detalhes. A pessoa disse em alto e bom som, para todas ouvirem, que sua filha tinha prioridade em ser atendida porque pagaria consulta particular, enquanto as outras usavam plano de saúde para serem atendidas...
Ainda bem que eu nem apareci na porta. Quem me conhece sabe muito bem do que eu seria capaz.
Também soube que uma paciente, advogada, que também estava há horas esperando, saiu no corredor para falar umas coisinhas para a mulher. Das coisinhas, eu soube que lhe recomendou um veterinário...
Esta paciente que me defendeu nem ficou para a consulta devido à falta de tempo. Ela vai voltar outra hora, pois é paciente de muitos e muitos anos.
Aquilo me deixou extremamente nervosa (mais do que ando) e tentava esconder da paciente, que naquele momento, estava deitada para eu examinar suas mamas.
O exame era automático. Minhas mãos trabalhavam, minha cabeça estava atenta ao que fazia, mas meu pensamento girava em torno desta droga de vida difícil que levo , como a maioria dos médicos.
De repente, sinto uma mãozinha quente passando no meu braço e descubro que a senhora me fazia um carinho suave, enquanto me olhava com bondade. Foi um instante. Eu passei a mão esquerda na sua cabeça e examinava a mama com a outra, num gesto de compreensão mútua e de parceria.
Por coincidência, naquele dia, só havia gente que já sofreu na vida, tanto física quanto emocionalmente, e eu já tivera participado de alguns fatos de suas vidas.
Destoou aquela mulher nervosa naquele lugar. Ali não se vê diferença de raça, religião, condição social, nem qualquer idiotice deste tipo. Ali eu sou o meu melhor e participo do melhor e pior de todo mundo, respeitando as diferenças e as amarguras do destino.
Nem sempre a gente consegue fazer isso e precisamos, às vezes, de ajuda, muita ajuda espiritual, emocional e do amor das pessoas.
Somos frágeis,nós médicos, principalmente por termos noção de como a vida pode acabar e como ela pode perdurar a custa de muito sofrimento. E, se nos diferenciamos do resto dos profissionais, é apenas por este detalhe. Precisamos sempre nos reciclar emocionalmente.
Por estas e por outras fiz a loucura de parar um ano de trabalhar por não ter menor condição de atender ninguém. Pago caro até hoje por isso, muito caro.
Aquele gesto de carinho súbito me fez voltar ao passado e me lembrei de algumas situações que me deixaram emocionada. Coisas simples, mas, tocantes.
Primeira historinha :
O Heitor, médico de minha mãe, que participou dos últimos anos de sua vida e foi o responsável por ela ter melhor qualidade de sobrevivência, um dia, no CTI, enquanto ela estava presa a uma máquina de hemodiálise, saindo de um coma, chegou para fazer sua visita de rotina todo cheiroso e com a roupa branquinha que mais parecia um anjo (pelo menos na cabeça de minha mãe). Minha mãe o chamava de “Dr Heitor Colírio Castro Júnior”.
Ela o elogiou e o convidou para deitar ao seu lado no leito do hospital, com seu jeito maluquete, que era de costume. E o pirado deitou!
Este mesmo pirado enfrentou os melhores médicos do Rio de Janeiro para impor suas condutas e fazer valer sua opinião. Era e é um médico jovem, mas muito capaz e não deixa pingos fora dos “is”. Ele põe muito médico de nome no chinelo e, no entanto, sabe a hora de ser criança e deitar ao lado de uma doente terminal para fazer sua vontade, se levantar e tomar condutas sobre a vida e a morte.
Segunda historinha:
Aniversário de minha mãe. Ela estava num quarto da semi-intensiva, cheia de catéteres no corpo. Um enfiado no peito (subclávia) para o soro e as medicações, outro que drenava a secreção do fígado para uma bolsa externa (que não poderia ser nunca retirado), um outro dentro da veia femoral, na perna, para a hemodiálise e outro no braço. Todos de acesso profundo. Além de um monitor cardíaco preso no tórax para avisar quando o seu coração começasse a descontrolar os batimentos. A qualquer momento ela poderia ter uma arritmia e fazer uma parada cardíaca, como eu já tinha presenciado bem na minha frente.
Heitor apareceu para a examinar, trazendo um enorme bolo e recomendando apenas comer um pouquinho.
Ela usava insulina por conta do diabetes, não podia comer doces.
“Mas, para que serve a insulina ultra-rápida? Para as crianças diabéticas fazerem arte! Então, por que não? Come-se o bolo e tacamos insulina na Dona Glória...”, disse ele.
Foi o bolo mais bem comido da história...
Naquele dia ela teve febre, com tremores por bacteremia (a primeira reação do corpo a uma infecção bacteriana no sangue). Daí, ela começou a descompensar o seu frágil coração. Eu fiquei atordoada porque os médicos de plantão não queriam a levar de novo para o CTI e apenas me recomendaram que quando ela começasse a “dissaturar”, para eu avisar.
O termo não existe, mas quer dizer em medicina, que, quando ela começasse a ficar sem oxigênio e roxinha, eu deveria acionar o CTI.
Enlouqueci de tanto nervoso e chamei Heitor de volta.
Ele apareceu como um guerreiro, ordenou que tirassem todos os tubos possíveis de serem retirados e fossem colocados novos. A bactéria que entrou em seu corpo devia ter vindo de algum tubo contaminado. Isso gerou equipes de cirurgiões vasculares, um grupo enorme de gente trabalhando em pleno domingo de noite.
Minha mãe, neste dia, sofreu muito. Ninguém leigo imagina e nem vou dar mais detalhes.
Eu estava esgotada, como sempre, depois de tudo resolvido. Deitei na minha cama (uma poltrona ao lado de seu leito) e dormi até amanhecer (faltava pouco).
De manhã eu acordo com um bilhete do Heitor no meu peito. Ele já tinha passado lá e já tinha brigado com meia dúzia de médicos idiotas.
O bilhete dizia mais ou menos assim:
“Leila, eu já tomei as condutas do dia. Apesar de sua preocupação, decidi não lhe acordar. Qualquer coisa, me ligue.
PS: Cara, você dorme feio pacas!“.
Pois é, eu tenho milhares de historinhas. Coisas que fariam até Jesus Cristo duvidar. Absurdos de médicos que acham que cagam cheiroso.
Ainda bem que existem Heitores e Leilas por aí - odiados, invejados, massacrados e pouco respeitados, mas sendo GENTE de verdade.