PARTIDA


                      Republicação – Texto escrito em 2008
 
 


 
     "Monolítica", disse-me certa vez um amigo, quando nós ambos éramos muito, muito jovens. "Uma mulher de tragédia grega na velhice"- assim selou ele a minha fotografia do futuro. Melodramática, retórica, rio falante a inundar todas as margens - "Você fala, fala, mas não faz nada", diz o papagaio, em romance do escritor francês Queneau. Pobre papagaio, ele só aprendeu a dizer isso e eu digo a mim mesma que só me queria ir embora, mesmo com este excesso de bagagem interior e alguma esperança de ainda conseguir pagar, nesta vida, ao menos parte do amontoado de dívidas com a família, e as profissionais, e as amorosas, e as metafísicas, e as metamórficas (...). As dívidas da lealdade. As dívidas da piedade e da auto piedade inúteis. A esperança, mínima, de ainda poder vir a ter algum saldo credor em algum compartimento da vida.
     Ah, pudera partir!  Partir. Partir. Partir. Deixar tudo e todos. Levar comigo, se possível, e não é mais possível, os meninos, de futuras e distantes salas de aula. Os meninos ainda inocentes apesar de muitos de seus atos já de adultos prematuros e amargos. Permanecer com eles, quando tal já não é possível, onde quer que eu esteja, onde quer que eu procure, desesperadamente, manter a esperança viva, nesta partida desejada, da mais acerba solidão. Levá-los comigo, agora só lembrança, levá-los, aos meus alunos, a lembrança menos dolorida das lembranças, quase todas só feitas de dor.
     Partir, não como teria partido há vinte e tantos antiquíssimos anos quando a alma, que se julgava tão vivida era, em verdade, ainda quase virgem; com a alma que carregava, ainda, a presunção de saber, de verdade, alguma coisa. Partir, partir agora, vinte e tantos anos depois. Partir com este cansaço de tantos mundos perdidos nos países de fora e de dentro, com este cansaço onde não cabe mais lágrima alguma nem mais ninguém, absolutamente Ninguém a quem responsabilizar pelo que quer que seja.
 





 
 
Texto de 2008, republicado na noite de 25 de agosto de 2011, com alguns acréscimos e alterações; republicado, mais uma vez, hoje, em 02 de setembro de 2014.