tamanho originalMENINOS DA CANDELÁRIA - A CHACINAtamanho original

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Não me lembrava do ano em que por lá passei. Muito menos do dia. Pesquisei para poder dar as datas certas ao momento que vivi e jamais esquecerei. 

Ano: 1993
Dia:22 de julho (véspera da Chacina, algumas horas antes.)

Morava no garimpo de esmeraldas de Campos Verdes, Goiás.
Às vezes, situações criadas por meu companheiro ou até por mim, faziam com que o perigo e morte rondassem nossas vidas. Nestes momentos o melhor era “dar um tempinho” no Rio de Janeiro até que tudo se acalmasse e eu pudesse voltar sem colocar nossas vidas em risco. 

Assim foi em julho de 1993.
Minha filha ainda era um bebê. Embarquei com ela rumo ao Rio sem data certa para voltar. Esperaria pacientemente o "sinal verde".
Sempre que vinha trazia algumas esmeraldas escondidas que nem mesmo meu marido sabia existirem. Eram minhas economias, por assim dizer. Por desconhecer meu “tesourinho escondido” (muito bem guardado!), ele sempre me entregava alguma quantia em dinheiro para minha sobrevivência na cidade. Dinheiro que eu também ganhava e pensava que controlava.
 
Eram meus momentos urbanos...
Costumava deixar meu bebê com minha mãe ou avó e passear descompromissadamente pelo centro do Rio. 
Deliciava-me visitar os museus, a Biblioteca Nacional, sentar-me em algum banco no Campo de Santana, vasculhar as feirinhas de artesanato e principalmente as de livros! 
Costumava sentar no Amarelinho da Cinelândia só para beber um licorzinho ou um café. Dali olhava para a Câmara Municipal e relembrava com saudades tempos que não voltariam mais. 

No dia 22, algo diferente e trágico aconteceu. Conhecia o centro como a palma de minha mão, no entanto, caminhando e sonhando me perdi. Quando dei por mim, estava andando numa ruazinha deserta... 
Tão absorta estava em meus devaneios que nem ao menos conseguia saber que estava tão próxima à Majestosa Igreja da Candelária. Igreja na qual pensava naquele exato momento. Avistei um guarda e resolvi pedir orientação:

-Boa tarde, Senhor! Pode me ajudar? Estou perdida. Preciso ir à Candelária...Qual o melhor caminho devo seguir?

O guarda olhou-me meio assustado pela pergunta que soava cega ou idiota...A Igreja estava imponente, intacta e imensa bem na minha frente e EU NÃO VIA!!!

- Moça, a igreja é aquela ali... Mas não vá por baixo da marquise. Atravesse aqui mesmo. Está perigoso por lá!

Acordei. Olhei a placa, ou seja lá o nome que se dá àquele brochinho de identificação que os PMs carregam no peito e me senti mais segura e confiante. Ele tinha o mesmo nome de meu pai: MARCELINO. 

Agradeci e segui meu caminho sem dar bola para o aviso de perigo sob as marquises e por lá mesmo continuei a andar distraída e perguntando a mim mesma que negócio era aquele de querer ir até a Igreja! Não tinha nada para fazer lá. Não estava nem um pouco a fim de rezar e a noite já estava caindo! Precisa voltar para casa e rápido...

Segui por baixo da marquise e avistei a poucos metros um bando de meninos. Alguns enrolados em cobertores “sapeca-neguinho”, outro mantinha a cabeça abaixada enfiada em alguma coisa que deduzi ser uma lata de cola. A maioria dos meninos estava encostada na parede, alguns em pé, meio torpes...

Pensei no ato: - Sua teimosa, idiota! Não deu ouvidos ao policial! Agora aguenta o tranco que você tá ferrada! Vai ser assaltada! Mantenha a calma...

A minha frente seguia um homem vestido de preto, usando rabo de cavalo com uma máquina fotográfica pendurada ao pescoço.

Acendi um cigarro, lembrando já com tristeza das esmeraldas na bolsa e da boa quantia em dinheiro que ainda me sobrara após meus gastos desatinados. Lamentei a perda que para mim parecia inevitável. 

Tudo se deu muito rápido. Um dos meninos me abordou. Pediu um cigarro. Evitando abrir a bolsa, dei o que tinha acabado de acender dizendo que era o último, mas que podia ficar com ele. 

O menino tinha o cabelo aloirado e ensebado. Não sei se pela falta de banho, mas dava para perceber que dificilmente um pente entraria com facilidade naquele emaranhado de fios maltratados pela vida marginal. Pegou o cigarro, tragou fundo, olhou-me de cima em baixo como que me avaliando. Tinha um sorriso irônico destes que têm quem vive nas ruas e está acostumado a ser o "Rei" da situação. Retribui o sorriso. Olhei para o homem de preto que ia à frente e pisquei para o garoto com a malandragem de quem quer mostrar alvo melhor que eu. Ele olhou e sorriu de volta. Ele, com a malandragem das ruas do Rio, eu com a malandragem da vida de garimpeira, nos entendemos em rápido olhar. 

- Não tenho outro cigarro. Vou nessa, ok?
- Se adianta...- respondeu. 

E me adiantei mesmo. Acelerei o passo, passei pelo homem de preto, indiscutivelmente um turista. Em dois tempos estava longe dali, dentro do ônibus que me levaria para casa, com meu dinheiro, minhas esmeraldas e minha pele. Tudo intacto.
Suspirei aliviada. Se ele assaltou o turista não sei e nem saberei. Sem remorsos segui meu caminho, certa de que havia sobrevivido como foi possível.

Quando cheguei em casa, comentei o fato com minha família.
E ouvi o de sempre, claro: 

- Ande acordada, Marcela!

No dia seguinte minha avó me tirou da cama visivelmente nervosa:
 
- Venha ver o noticiário! Levante!


CHACINA NA CANDELÁRIA!

- Por Deus, vó! Até achei que aqueles meninos eram mesmo marginais e iriam me assaltar! Talvez o fizessem mesmo, mas não mereciam isso!!! Eram vítimas da sociedade mesquinha e sem oportunidades em que vivemos!
Voltarei à Candelária e rezarei por cada um deles...deveria ter rezado ontem quando aquela força estranha me empurrava para a Igreja! Senti medo e não fui... - falava nervosa para minha avó e em voz alta para mim enquanto caminhava de um lado para o outro pelo apartamento.


Hoje me pergunto se o menino que me pediu o cigarro é um dos sobreviventes... e acho que é apenas mais um detalhe que continuará sem resposta.

Sou obrigada a concordar com Wagner dos Santos, - sobrevivente - , que pelo que sei vive hoje na Suíça: 

- NADA MUDOU, WAGNER! SE MUDOU, MUDOU PARA PIOR! VIVA SUA NOVA VIDA NA SUÍÇA!
Estude, trabalhe, seja um cidadão na plenitude da palavra...Que por aqui, meu amiguinho (será o do cigarro?), a desigualdade, desinformação, violência, falta de educação escolar de qualidade e famílias desestruturadas só vem aumentando dia após dia! 

Você daí, eu daqui:
Choremos pelo Brasil e pela Chacina de mãos dadas...




by MarCela Torres


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Fato real vivido ao anoitecer do dia 22 de julho de 1993 na Candelária, Rio de Janeiro.
Algumas horas depois, durante a madrugada, a Chacina aconteceu...




Link da IMAGEM:http://explow.com/chacina



Music tamanho original CHÃO DE ESTRELAS tamanho originalInstrumental
tamanho original Composição de Silvio Caldas e Orestes Barbosa tamanho original 



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MarCela Torres
Enviado por MarCela Torres em 20/05/2007
Reeditado em 24/10/2012
Código do texto: T494564
Classificação de conteúdo: seguro
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