Seu Pescocinho
Numa das minhas idas à Serra da Bocaina, entre Bananal e São José do Barreiro, quis rever o Parque Nacional. Fiquei sabendo do péssimo estado da estrada, em parte fruto da visão dos nossos órgãos ambientais que enxergam no homem um predador e, portanto mantém a estrada ruim para assustá-lo. No meu entender, deviam antes educá-lo e, é claro, mandar consertar a estrada, mas eu não devo entender nada de ecologia. De qualquer maneira esta é outra história.
Com medo de colocar o meu carro na estrada ruim me dirigi ao dono da pousada e este prontamente me recomendou, seu Pescocinho, ou melhor, o táxi dele. Conversando com o proprietário da hospedagem fiquei sabendo que seu Pescocinho era vereador mas como o município era pequeno, a arrecadação era baixa, o homem era obrigado a ajudar no sustento da casa transportando os turistas. Na câmara a sua atuação era discreta, discretíssima. Como a verba do município não dava para grandes obras, a maioria das discussões do legislativo girava em torno da mudança do nome da praça, ou então, concentrava-se na seleção do candidato ao titulo de cidadão honorário da cidade. Nos discursos que se sucediam interminavelmente, rivalizando em veemência e eloqüência, a linha de argumentação era difícil de reconhecer. Seu Pescocinho não resistia, a cabeça pesava, a coluna vergava, ele se arredondava e se derramava sobre o assento da cadeira. Na hora da votação, no entanto, o cutucão do colega o levava de volta ao dever. Seu Pescocinho não se embaraçava. O olhar certeiro o levava a acompanhar o gesto não de qualquer um, que seu Pescocinho tinha credo político, mas às vezes de um, às vezes de outro, ele tinha lá as suas simpatias.
No dia marcado para o passeio seu Pescocinho apareceu acompanhado de seu Fusquinha e pegamos a estrada. Era pedra, pedregulho, vala, costeleta e às vezes tudo isto junto. Seu Pescocinho, pé embaixo, não estava nem aí para as gretas, sulcos, cortes, enfim, as mazelas da mãe terra. Pairava incólume muito acima dos sacolejos e solavancos. Em certo momento, para compor o clima, puxou do bolso uma gaita e começou a tocar modinhas, serestas e canções. Uma mão ia no volante e com a outra fazia a gaita dançar sobre os seus lábios. Na hora da troca da marcha é que era o problema. Seu Pescocinho trocava a gaita de mão e com a direita livre passava a marcha. O volante? Ia na mão de Deus!
Se seu Pescocinho tinha ligação com o Além, isto eu não sei dizer ao certo. Mas o seu Fusca não tinha. Prova disto é que numa curva mais fechada, ou talvez tenha sido uma vala mais profunda, ou uma pedra mais alta, o seu carro arriou. Saltamos do carro e coçamos a cabeça que é o que dá para fazer nestas situações. Quer dizer, seu Pescocinho não, pois ele já tinha o diagnóstico pronto. Não só o diagnóstico com tinha também a solução e, resoluto, puxou do fundo do compartimento de bagagem uma corda com a qual amarrou o "facão" ao eixo do carro.
Se Deus erra, então também seu Pescocinho tinha o direito de errar. De fato, o remendo, que é o que a gente, com propriedade, pode chamar o conserto feito de corda juntando aço, durou uns quinhentos metros e, novamente, o carro arriou. Novamente seu Pescocinho não se aperreou. Ele tinha soluções na cachola como outros têm coelhos na cartola. Mandou a gente esperar e não tardou quinze minutos para surgir, como por passe de mágica, não com um coelho, que a região era de mata e os coelhos preferem o campo, mas, com outro Fusca. Viemos a saber depois que seu Pescocinho tinha uma rede de compadres e amigos com Fuscas ao longo de toda a estrada.
O resto do passeio? Ora, o resto do passeio foi o habitual: cachoeiras, o cheiro da mata, o frescor da natureza, o céu azul e o ar límpido. O que ficou mesmo foi seu Pescocinho e seu toque de originalidade nas soluções para lidar com a adversidade.