PRECONCEITO - Segunda Parte
PRECONCEITO - SEGUNDA PARTE
No dia seguinte ...
Segunda feira às seis horas da manhã toca a cigarra. Seu Simão acorda sobressaltado. Levanta-se e vai atender o chamado. Antes de chegar à porta principal resmunga ...
- Quem é que está vindo me tirar da cama agora ! Mas só o que me faltava ! Esse pessoal parece que não dorme !
Aproxima-se mais pra dar uma olhada pelo olho mágico. Antes de perguntar quem estava lá fora ouve a voz inconfundível de Guilherme.
- Sou eu vovô, Guilherme.
Seu Simão abre a porta e ainda esfregando os olhos vai e abre, também, o portão.
- O que o traz aqui a esta hora ?
- Passei pra pedir sua bênção e a de vovó também. Aproveitando a oportunidade vou tomar o suco que ela preparou pra mim !
- E como você sabia disso !
- Ela avisou-me pelo telefone. Vovó é nota dez ! Disse Guilherme sorrindo.
a entrada do portão vira-se e diz:
- Benção vovô !
Depois passa direto pra cozinha.
- Deus te abençoe meu neto !
Agora na sala de jantar.
- Benção vovó !
- Deus te guarde Guilherme !
Depois de tomar o lanche na cozinha com o seu xodó ao lado, volta às pressas para o portão onde o seu pai se achava esperando para conduzi-lo para a escola.
- Vovô quando eu voltar da escola venho direto pra cá para o senhor me contar o resto da história. Deu um sorriso e embarcou na condução que lhe leva pra escola.
E assim aconteceu ...
Chega Guilherme por volta das doze horas. Vem para casa de Simão já está como de costume a sua espera para o almoço.
Depois da refeição Simão senta-se na cadeira do vovô de frente pra porta para a tradicional sesta. Agora, uma hora de espera que pra Guilherme pareceu um século.
Durante esse tempo o menino põe guarda ao seu querido avô. Na ânsia de vê-lo espertar para dar continuidade à história. Até que, “menino o que você está fazendo
aí sentado nesse chão frio ! Cuidado pra não adoecer !”
“Quero ouvir a sua história, vovô”, respondeu sorrindo. Em seguida foi logo perguntando “diga-me como era minha avó ?”
- Bem. Ao longo dos dias fui observando os detalhes do físico. Jovem, bonita, cabelos ligeiramente ondulados com uma mecha sobre a testa, pele rosada, possuidora de um visual encantador. Não chegava ter um corpo escultural, mas, o rosto, um par de pernas bem torneadas e mãos delicadas formavam o perfil que muitos homens admiram. De semblante tão juvenil que eu cheguei ao ponto de julgar ser menor de idade. Para sanar minha dúvida foi preciso pedir pra ver sua identidade estudantil. Suspirei ao ver que tinha nascido no dia 22 de junho do ano de 1950. Aliviado por saber que se tratava de uma pessoa adulta. Passara o medo de ser taxado de aliciador de menor.
Ela estudava e também trabalhava como professora do ensino fundamental. Muito recatada. Não gostava de festa. Dividia seu tempo com a casa, trabalho e faculdade até me conhecer. Como diz, o seu príncipe encantado, o seu xeique. E enfatiza “conheci as noites de Natal a partir do nosso primeiro encontro acontecido no dia 25 de maio do ano de 1976”.
- Vovô você ainda se lembra da reação dos familiares de minha vó quando você foi apresentado a eles ?
- Todos me olhavam com certa desconfiança. Depois de muito tempo vim saber por meio de um cunhado a forma como realmente me viam. Pelo que entendi de suas palavras às conversas a meu respeito eram tocadas no meio familiar quase sempre com um toque discriminatório, “nos parece ser uma boa pessoa”, mas é preto. Como exemplo disse ele ter ouvido tantas, que perdeu as contas.
- Maria, minha filha, o que você viu naquele negro que te encantou ?
- Minha sobrinha está cega ?
- Prima, você está precisando usar óculos. Ou coisas desse gênero.
Certo dia, depois de ter sido apresentado a sua tataravó por parte de pai, cheguei a ouvir dela o seguinte comentário dirigido a mãe de sua mãe: “Arre maria ! Em nossa família já tem gente dessa qualidade”. Acho que ela quis dizer: Já tem preto na nossa família ? Em sendo ela branca, de olhos verdes, acredito que outras palavras não haveriam de sair de sua boca.
Depois de muito tempo de convivência com os familiares de sua avó materna e já acostumado a ouvir nas falas deles certa rejeição contra uma pessoa preta terminei me acostumando com o tema.
Valdemiro só tem de preto a pele ! Ou, este é um preto de alma branca ! Esse “neguim” é um cara legal. Pra eles isso significava um elogio. Para que não houvesse desgaste nas relações o que redundaria em desgosto a sua vó, preferi engolir tudo isso com uma boa dose de humor. E numa oportunidade sorri ao replicar as palavras de um deles da seguinte maneira.
- Prefiro que me chamem de “negão” por que entendo que “neguinho” não corresponde bem a minha altura de um metro e oitenta e um centímetros.
Isso aqui não é conto da carochinha. Para que você tenha a ideia de como o racismo está enraizada no pensamento da família, um dia ouvi sua bisavó dizer que, quando jovem conheceu um rapaz que lhe nutriu admiração e, temendo que ele dispensasse atenção mandou que a irmã se escondesse a fim de não ser vista pelo seu pretendente.
Atente para um detalhe, a irmã tinha a pele clara, olhos verdes e cabelos cacheados. Então, o rapaz observando que a mocinha saia rapidamente como se estivesse tentando escapar de um perseguidor, perguntou ! “Quem é ela ?”. Sua bisavó não esperava essa pergunta tentou desconversar. O rapaz insistiu na pergunta “quem é ela ?”. Sua bisa titubeou na resposta. É ... bem ... é a empregada da casa.
- Sentiu Guilherme como foi difícil ser aceito nessa família, disse Simão. E continuou.
No entanto, preciso destacar a figura e o comportamento de uma das irmãs de sua vó, que não se encontra mais entre nós e de quem falo com muita saudade. Minha advogada.
Desde o início do meu namoro com a caçulinha da família, como gostava de dizer, a preferida, ela já me tratava de cunhado. Investia contra quem quer que fosse da família que ousasse me tratar com desdém.
Outro lance se deu com irmão de sua avó que gostava da “branquinha”. Certo dia fuxicou de mim dizendo a sua bisavó que eu não lhe dera dinheiro para tomar uma dose. Que sabia de minha disponibilidade. No momento que me aproximava ainda ouvi “esse nego não vale merda”. Palavras da bisa.
Depois de algumas horas de falação Simão olha para neto, ao mesmo tempo em que consulta seu relógio de algibeira, retirado do bolso com bastante cuidado “dezoito horas, e a nossa conversa vai ficando por aqui”. Recoloca o cronômetro no devido lugar e completa. “Guilherme, no capítulo da minha vida esse assunto não está esgotado. Em outra oportunidade voltarei a discorrer dentro de outras situações”.