Para simbolizar a mudança

O primeiro era um piazão, não devia ter mais do que 20 anos. Ninguém imaginava que ele fosse capaz daquilo que estava contando: um dia chegou a bater na própria avó. Lembrou de todas as coisas feias que já fez, revelou detalhes da família destroçada em que nasceu, e concluiu dizendo que agora queria mudar. O segundo era mais ou menos da mesma idade. Assumiu-se usuário de drogas. E contou dos furtos e brigas que já havia se envolvido nas ruas. Assim se sucediam as histórias, uma mais triste do que a outra, todos confessando coisas que talvez nunca tivessem confessado, expondo vidas em frangalhos, em busca de uma nova esperança. E eu fiquei sem jeito na minha vez, pois o pior que eu podia contar, o motivo que eu tinha para também querer uma mudança, era apenas baixa autoestima.

Na verdade, eu nem teria participado desse retiro se minha irmã não tivesse insistido tanto. Eu sempre resisti a esse tipo de coisa. Mas chega uma hora que a gente se cansa e resolve tentar, nem que seja para depois falar que não deu certo. Aí eu fui. Levei roupa para três dias, deixei com ela todos os aparelhos eletrônicos e fui para uma chácara longe de tudo. Até lei do silêncio tinha lá, que era para a gente não se distrair. Três refeições por dia, coisa básica, uma sopinha leve na janta. Lá eu deveria refletir sobre a minha vida. E refleti mesmo, porque não tem como não refletir. Lembrei de muita coisa que havia esquecido que machuca. E aceitei todo tipo de conforto que me ofereceram em troca.

Voltei de lá bem vestido – levamos roupas novas para simbolizar a mudança. Teve até festinha para me receber e comemorar a nova fase na minha vida. E eu me sentia mudado, tanto que nem quis saber das novidades que aconteceram no mundo enquanto estive fora. Só que ainda na volta para casa eu discuti com a minha irmã. Nem sei mais o motivo. Sei que discuti. E aí eu suspeitei que ainda não havia mudado de verdade. E aí eu suspeitei que a mudança não termina nunca.

milkau
Enviado por milkau em 19/08/2014
Reeditado em 19/08/2014
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