Chão. Doce Chão! Doce? 
   O objetivo dos empreendimentos é a sobrevivência por um período de tempo determinado, ou o mais longo possível. É glória, a comemoração de aniversário de uma marca, uma empresa, um acontecimento e principalmente de uma pessoa. 
     A bagagem histórica dos empreendimentos se esparge no ar como uma fragrância de tênue fixação. Mas, a pessoa retém na pele o aroma singular, a memória única da própria existência, e só a ela pertence, o acesso ao precioso perfume. 
     Iraci Rangel, a pessoa; Iraci Araújo, a esposa, mãe, avó e bisavó e Cici Araújo, a escritora, atenta à volatilidade da memória humana, proveu um registro perene, através da produção de um livro, escrito por ela, O Fio da Meada: uma narrativa familiar que se inicia a partir de seus bisavôs, vindo até os bisnetos.
     Motivada pela passagem de mais um aniversário de sua existência, Cici, assim prefere ser chamada, promoveu um passeio à sua localidade de nascimento e vida, até a adolescência. Talvez, o desejo de encontrar contemporâneos, e juntos, revirar algumas lembranças guardadas no porão do passado, ou simplesmente, a contemplação das ruínas da usina de cana de açúcar, antigo coração do lugar. Seu Coliseu, tal a importância tem para a sua existência, aquele pedacinho de mundo, seu doce chão.
     O passeio é iniciado por um almoço, onde junto com esposo, filha e genro é saboreada uma deliciosa moqueca de camarão acompanhada de um bom vinho. 
     O cortejo segue pela Avenida Caxangá, e continua através dos municípios de Camaragibe e São Lourenço da Mata.
     O chão é Tiúma! Que em Tupi Guarani significa lagoa, mas embora antes, coberto por lençóis verdes de cana de açúcar como poeticamente escreveu Cici, não é doce, seu povo sim!  
     Essa história é mais um sulco rasgado na alma brasileira pela monocultura da cana de açúcar. Não foi diferente para as outras culturas do cacau, café e algodão.
     Quais os males ceifadores da opulência daquela época? Não seria difícil eleger, ao menos, uma dezena, mas é suficiente ater-se aos três primeiros do imaginável rol: contratos multinacionais, abundância e fácil acesso ao capital público mal administrado e por último, má distribuição de renda.
     O nome do dragão era Nortern – Brazilian Sugar Factory fundada em 1887. A empresa de “Sir Thomas Jobson” e direção plena de ingleses, por quarenta e dois anos manteve a chama acesa e o bueiro da usina fumegante, aquecendo e defumando, o sonho e alma de toda a comunidade dependente direta ou indiretamente do bem estar e saúde do empreendimento.
     Antes, porem, do último bocejo do dragão inglês em 1929, a empresa foi vendida para brasileiros e teve o capital aberto, onde o senhor Fileno de Miranda tornou-se diretor presidente da Cia. Usina Tiúma Cansanção de Sinimbu.
     Após esse procedimento, tentativa de restabelecimento da saúde financeira da empresa, o dragão agonizante, poucos anos depois desaba em sono profundo.
     Poeticamente a escritora registra:
        
     “... inúmeros engenhos cobertos de plantação de cana, que, na época da moagem, em setembro, vista de longe, mais parecia imenso lençol verde, cobrindo tudo e ondulando ao vento.”
 
     “Nem apitos de locomotiva trazendo cana dos engenhos, nem o bueiro soltando aquela fumaça preta característica do vapor que acionava as moendas.”

     Foi prática comum, o aporte de dinheiro público para alavancar a produção agrícola, àquela época. Dinheiro fácil de vir, mas dificílimo para retornar aos cofres do erário. A justificativa mais comum era a estiagem, falta de chuvas na região, a seca.
     A redução do financiamento através de melhor controle foi aos poucos levando os dragões espalhados pelo nordeste, a deitar em berço esplêndido e dormir o sono eterno da falência. Mas cada usina fechada produziu o desemprego de muita gente e sofrimento para toda a comunidade dependente daquele modelo de produção. E, assim é registro no Fio da Meada:
 
     “A usina Tiúma ainda funcionou vários anos, mas, devido à má administração, desajustes familiares e constantes prejuízos, foi decaindo, se decompondo, até que foi vendida...”
 
     A distribuição de renda foi e ainda é no País um problema social. Um baixo salário mínimo, embora nos últimos anos, venha aos poucos sendo corrigido. Mas naquele período e dentro do contexto usinas de cana de açúcar, a situação era muito mais grave, ainda pelo ranço da escravidão.      Dar comida, roupa e até manter, tudo bem! Mas, dinheiro significa independência, liberdade. Mesmo sendo aquela época, o início do século vinte, tal cultura ainda era perceptível e pode ser apreciada no texto da escritora.
 
     “... é difícil até imaginar que, com tanta simplicidade e salário tão pequeno, mesmo com a ajuda dos filhos, ele pudesse manter uma família tão grande...”.
 
     “Mas, se levarmos em conta que naquela época, sendo meu pai e meus irmãos incluídos no rol dos empregados mais qualificados da Usina, recebiam, de graça, casa, luz, água, lenha para o fogão, leite, açúcar e medicamentos básicos, é fácil compreender por que o dinheiro, apesar de pouco, ainda sobrava...”.
 
     A visita foi triunfal.
     Logo na entrada do município, os santos pareciam aguardar a chegada do cortejo. O sino da igreja repicou anunciando o início da missa, mas pareceu Tiúma brindando a chegada de sua filha ilustre, que há anos não via.
     A história está ali, intocável!
     A casa, onde viveu uma senhora de nome Eline: muito bela e gentil. Inspiração para nomear a primeira filha. Hoje, no local, mora um senhor, antigo operário da usina, que por muito tempo, trabalhou sob o comando de um de seus irmãos.
     A antiga residência da família Rangel, não é mais moradia, e sim, uma unidade do Programa de Saúde da Família da Secretaria Municipal de São Lourenço da Mata.
     O clube social, cujo nome foi iniciativa de Nelson, um de seus irmãos, Associação Rerum Novarum em total estado de abandono e as sobras do cine Rex, após desabamento do teto.
     No pátio das ruinas da usina, o portão fechado e animais pastando no interior.
     A casa grande do alto da colina onde moravam os ingleses nos tempos áureos da usina está lá, mas com acesso restrito.
     A antiga estação de trem envolvida pelo mato foi avistada de longe.
     Afora, à altura dos muros e os gradis nas casas, pouco mudou. De novo só o sentimento de insegurança e medo, hoje predominante em cada centímetro de solo brasileiro.
     O rumo certo agora é o retorno à Recife, debaixo de um céu escurecido por nuvens carregadas e ameaçadoras de muita chuva, choro pela nova partida da filha, mas ao longo da volta, reduzida a uma garoa, algumas lágrimas derramadas pela compreensão da necessidade da volta.
     Cici nasceu e viveu parte de sua juventude nesse chão, ao lado de seus familiares, amigos e o povo dessa terra. Correu entre os canaviais, caminhou léguas entre a usina e o centro de São Lourenço da Mata, onde ia às sexta feiras em busca de lazer, quando não havia festa no clube local ou filme novo no cine Rex. Cantou junto ao pai e irmãos, todos músicos. Trabalhou junto a eles, também na usina. Então, como sair desse torrão sem deixar o coração?  
     Não há fumaça em chaminés. O fogo do dragão apagou. Não há sacas de açúcar prontas para o transporte. Nem mesmo rapadura, mel, ou o garoto vendedor de pirulito doce, a sibilar aquele apito característico, anunciando a sua passagem pela rua.
     Um forasteiro, ao tomar conhecimento dessa história, poderia prematuramente e sem diligência, questionar à Tiúma pela partida de seus filhos. Por que não os acompanha? Como faz o rio Capibaribe, que os levam até Recife, e depois se mistura ao mar para acompanhá-los em outras praças.  Deixo-lhes, a liberdade de ir, e quando voltam estou aqui para recebê-los, e sejam onde estiverem, terão a mim em seus corações.  
     Um brinde à Tiúma! Doce chão de Iraci Rangel, onde ela pisou pela primeira vez. Onde amou e foi amada no seio de sua família; cujo lema é, o fruto dos ensinamentos de sua mãe, Dona Olívia: amor a Deus, sobre todas as coisas, e ao próximo como a si mesmo.
     Os acordes musicais de sua orquestra familiar, não são privilégios exclusivamente seus, mas também de filhos e sobrinhos, herdeiros desse bem maior, a arte. O som da Banda Musical Oito de Dezembro ainda ecoa em concerto na concha acústica de suas lembranças e emoções.
     Mas a vida é floresta densa, plena de oportunidades e ameaças. Ao ser humano basta estar atento e fazer as escolhas certas. Então, Iraci Rangel e Albani Araújo, ele, também oriundo do doce da cana de açúcar, lá da usina Caxangá, foram colocados frente a frente. O movimento das ondas do destino, sopradas pelos ventos do acaso, foi a providência. Eles aceitaram o bote e o remo e se lançaram à vida para iniciar a canoagem da sobrevivência juntos.
     Não foi fácil, ela sempre fala de forma tranquila com bom humor e sorridente. 
     Em sessenta e cinco anos de parceria, desceram rios, superaram obstáculos sem cair do bote, perder ou quebrar o remo. Assim, atravessaram o século vinte, abriram as cortinas do atual, e sob o júbilo da grande obra realizada, contemplam: cinco filhos, treze netos, cinco bisnetos, e uma plêiade de parentes e amigos.
     A imortalidade pode ser obtida através da obra científica, das artes, ou em primeira instância pelo cultivo de uma frondosa árvore familiar.
     Iraci Rangel, Cici Araújo, ou simplesmente Cici, como é tratada por todos com muito carinho, se fez imortal: pela frutífera árvore familiar e livros editados, tendo inclusive um, 80 horas, sido premiado pela Academia Pernambucana de Letras.

     Crônica escrita por Ed. Arruda em homenagem ao aniversário de Iraci Rangel (Cici Araújo - Escritora), cidadã de Tiúma – PE. Recife, 14 de agosto de 2014.