A morte faz a diferença
Tantos propalam com boca cheia que a morte a todos iguala. Observando melhor, fica-se sem saber como, quando e onde isto acontece. Observando um pouco mais, nota-se que a Criação oferece provas de que o Criador aposta na diversidade e que, segundo o que tem sido ensinado secularmente, quando mortos, uns vão para o Céu, outros para o Inferno e aqueloutros para o Purgatório. O que diz a Bíblia é que mortos descansam e de coisa alguma sabem até que venha o Dia do Juízo Final. Pensando sobre tais afirmações e tantas mais, emerge um questionamento: Como é possível compreender essa suposta igualdade da morte, a não ser pelo sono da espera?
Refletindo sobre tantas mortes de personalidades públicas do mundo das artes e da política, neste ano de 2014, e, especialmente sobre o acidente aéreo que atingiu uma aeronave cujos passageiros eram os pilotos, os políticos e pessoal de apoio, tem-se observado uma série de outros fatos que merecem ser destacados. Um deles e mais visível é o “acidente” causado pela mídia que, dia e noite, salvo raras exceções, tem repetido exaustivamente a chamada MORREU FULANO.
Um tanto confusa com a gritaria da mídia, pois, em algum momento, ouvi que um acidente aéreo havia vitimado fatalmente 7 pessoas, foi assim que, entre os meus afazeres, fiquei em dúvida se teriam acontecido dois acidentes no mesmo dia, um em que MORREU FULANO e outro em que morreram essas sete pessoas. Em dúvida, resolvi prestar mais atenção às reportagens e, finalmente, vi que ocorrera apenas um acidente. E as vozes midiáticas, ao longo do dia, anunciando: MORREU FULANO.
Retornando ao assunto do primeiro parágrafo, a igualdade que traz a morte, vejo esses fatos comprovando que a morte faz a diferença. ALGUÉM é ALGUÉM. Nosotros somos NINGUÉM. Vosotros sois NINGUÉM e ALGUÉM é só FULANO.
Girando para lá e para cá e ficando no mesmo lugar, recordo que, também recentemente, a mídia conseguiu transformar audiências de julgamento em megashows nos quais Joaquim virou herói que depois virou bandido e que, enfim, foi saindo de fininho. Lewandovski era o sujeito antipático, mas que veio a ganhar na questão e deixou Joaquim no chinelo.
Quanto ao acidente aéreo, esse que matou sete seres humanos, entre eles um conterrâneo, a mesma mídia alcança realizar mais um show, o de um funeral que, de tão pós-moderno, teve até punhos para o alto, vaias, aplausos e selfies. É mesmo o Apocalipse.
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Auto da Lusitânia, de Gil Vicente
O Auto da Lusitânia, uma das últimas peças de Gil Vicente, foi escrito em 1531 e representado pela primeira vez em 1532, perante a corte de D. João III quando nasceu seu filho, D. Manuel.
Ninguém: Que andas tu aí buscando?
Todo o Mundo: Mil cousas ando a buscar:
delas não posso achar,
porém ando porfiando
por quão bom é porfiar.
Ninguém: Como hás nome, cavaleiro?
Todo o Mundo: Eu hei nome Todo o Mundo
e meu tempo todo inteiro sempre é buscar dinheiro
e sempre nisto me fundo.
Ninguém: Eu hei nome Ninguém,
e busco a consciência.
Belzebu: Esta é boa experiência:
Dinato, escreve isto bem.
Dinato: Que escreverei, companheiro?
Belzebu: Que Ninguém busca consciência.
e Todo o Mundo dinheiro.
Ninguém: E agora que buscas lá?
Todo o Mundo: Busco honra muito grande.
Ninguém: E eu virtude, que Deus mande
que tope com ela já.
Belzebu: Outra adição nos acude:
escreve logo aí, a fundo,
que busca honra Todo o Mundo
e Ninguém busca virtude.
Ninguém: Buscas outro mor bem qu'esse?
Todo o Mundo: Busco mais quem me louvasse
tudo quanto eu fizesse.
Ninguém: E eu quem me repreendesse
em cada cousa que errasse.
Belzebu: Escreve mais.
Dinato: Que tens sabido?
Belzebu: Que quer em extremo grado
Todo o Mundo ser louvado,
e Ninguém ser repreendido.
Ninguém: Buscas mais, amigo meu?
Todo o Mundo: Busco a vida a quem ma dê.
Ninguém: A vida não sei que é,
a morte conheço eu.
Belzebu: Escreve lá outra sorte.
Dinato: Que sorte?
Belzebu: Muito garrida:
Todo o Mundo busca a vida
e Ninguém conhece a morte.
Todo o Mundo: E mais queria o paraíso,
sem mo Ninguém estorvar.
Ninguém: E eu ponho-me a pagar quanto devo para isso.
Belzebu: Escreve com muito aviso.
Dinato: Que escreverei?
Belzebu: Escreve
que Todo o Mundo quer paraíso
e Ninguém paga o que deve.
Todo o Mundo: Folgo muito d'enganar,
e mentir nasceu comigo.
Ninguém: Eu sempre verdade digo
sem nunca me desviar.
Belzebu: Ora escreve lá, compadre,
não sejas tu preguiçoso.
Dinato: Quê?
Belzebu: Que Todo o Mundo é mentiroso,
E Ninguém diz a verdade.
Ninguém: Que mais buscas?
Todo o Mundo: Lisonjear.
Ninguém: Eu sou todo desengano.
Belzebu: Escreve, ande lá, mano.
Dinato: Que me mandas assentar?
Belzebu: Põe aí mui declarado,
não te fique no tinteiro:
Todo o Mundo é lisonjeiro,
e Ninguém desenganado.
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Merecer uma apreciação da Professora Dalva Molina Mansano, especialista em literatura pela UEL, representa um distintivo para o texto que escrevi e para a minha história de vida.
Obrigada, colega e amiga, Dalva.
A crônica (A morte faz a diferença) traz em seu bojo uma espécie de desencanto com a humanidade, inclusive a tristeza da consciência de que alguns seres humanos não respeitam pessoas, tampouco momentos e ou lugares. A feliz ideia de colocar Gil Vicente logo abaixo, compara os homens deste século a figuras alegóricas de outra época, satirizando e corporificando o Bem e o Mal (de forma irreverente, porém inatacavelmente séria, como era característica dele ). Parabéns pela excelente lembrança de trazer aqui um passado tão presente em nossa sociedade, pelo qual se pode observar que a humanidade não busca melhorar-se no que tange ao ser ou não íntegro. Raul Seixas, inteligentemente, escreveu "Morte, morte, morte, que, talvez, seja o segredo dessa vida." Penso que quando dizem que na morte todos se igualam, referem-se ao fato de todos tornarem-se pó. A Humanidade chegou a um crepúsculo moral e é preciso alimentos mais substanciosos para clareá-lo.É nesse momento em que ela se acha mais pobremente revestida. Reveste-se de aberrações. Os homens veem-se no círculo estreito da matéria e se fecham a eles a vida infinita no túmulo: Nec plus ultra! A vida espiritual não é interrompida pela morte corpórea. Tudo que se adquiriu em perfeição pelo trabalho, não está perdido. A razão do que se é hoje encontra-se em existências anteriores e, daquilo que se faz hoje, o homem será um dia.Tenha certeza de que o desrespeito pelo semelhante, hoje mostrado, não mudará no pós morte, pois as diferenças daqui serão as mesmas de lá, até que se redimam por si mesmos. Caso contrário, a morte não faz a diferença. Resumindo, o respeito pelo outro deve ser de igual tamanho, seja esse outro famoso ou anônimo, pois boa conduta não ocupa espaço.