Sobrenome

Acorda cedo. Acorda disposta. Banho tomado, água fria, a pele treme, arrepia. Roupa de sempre, de todo dia, roupa de trabalho, bermuda surrada, bolso furado, batom vermelho, pouca boca e dentes também. Bolsinha de lado blusinha alça fina verde limão, etiqueta displicente do lado de fora, chinela de courino comprada na feira para a virada do ano na Beira Mar. Cabelo no coque, química no cabelo: loiro ‘mico-leão’. Brincos de plástico cor cenoura, combinando com a blusa. Tom sobre tom.

O café no fogo, cheiro de todo dia no barraco. Café forte, café de segunda, café de vender na praça, a freguesia já é certa. Às vezes sai fiado, às vezes sai na permuta por um cigarro. Vício aprendido desde criança. “Fuma que engana a fome” - A madrasta dizia. Fome não passa mais. Café e cigarro, freguesia certa na Praça Coração de Jesus.

Lá está Maria Célia.

Dia a dia, acorda só. Há muito pisca para Raimundo do moto taxi; este conta aos colegas de profissão: “É um sesto” - Diz. Todos riem, poucos ligam exceto Maria Célia.

O expediente no centro acabou. O cafezinho também. Volta para casa sem ninguém também.

Dia após dia, na após ano.

Lá está ela. Maria Célia.

Sexta, fim de semana, sentada à mesa do bar e lanchonete ‘Dois Irmãos’, um quarteirão depois do trabalho, logo ali na Av. Duque de Caxias.

Roupa de sair. Chinela rasteira, perna fininha e shortinho “beira-cú”. Jeans desbotado e blusa branca ‘Q-boa’. A química no cabelo sem coque, a pele queimada, sol de todo dia vendendo cafezinho na Praça Coração de Jesus de lá para cá de cá para lá. O batom ainda é vermelho. Pouca boca e dentes também.

Bebericando há duas horas a mesma cerveja jogando charme para dois homens na mesa ao lado conversando amenidades. Balança o cabelo pisca o olho. Sorri.

O garoto do bar pergunta: ‘Mais alguma coisa senhora?’

“Sem mais para o momento” – Ela fala alto a frase de efeito que ouviu na novela das nove. Tentativa frustrada de impressionar com pouca boa fala.

São 23:30, os homens embriagados falam alto, conversam sobre amenidades. Maria Célia já não fala ‘sem mais para o momento’ e garoto do bar nem lembra que ela ainda está ali.

Raimundo do moto taxi passando, pergunta à Maria Célia se não quer ir para casa. Em vão, porque Maria Célia já foi embora.

Já foi embora?

Foi na mesa do bar, ‘litrão’ pela metade, copo cheio, mão no copo, cabeça derreada, boca semiaberta, língua para fora.

Recolhendo as mesas da calçada, ‘expulsando’ os homens que conversavam amenidades, o garoto do bar volta-se para Maria Célia só então percebendo que ela já se foi.

Morreu de quê?

De sobrenome.

Maria Célia Solidão.

Kátia Santvs
Enviado por Kátia Santvs em 17/08/2014
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