Uma noite no programa de Glênio Reis
Eu estava no meu primeiro ano de faculdade de música, cursando todas as disciplinas em uma das melhores universidades da América Latina. Finalmente tive algum retorno da música no meio de tantas incertezas de viver da arte em um país com dificuldades para assimilar a cultura e a educação. Foi difícil entrar na faculdade, passei por algumas etapas na prova específica e depois vestibular. Dedicação, disciplina e determinação.
Recebi uma ligação do Glênio Reis em meu celular: “Podes aparecer amanhã à noite no meu programa?”. Sim, posso. Eu teria que tocar ao vivo, até aí tudo bem. O detalhe é que havia semanas que eu não tocava ou cantava: meu corpo e minha mente estavam esquecidos das ações musicais. Nunca priorizei a performance e sim a composição. Eu estava imerso em trabalhos acadêmicos e partituras para analisar e dissecar. Eu não conhecia pessoalmente o Glênio, mas sabia de sua trajetória na Rádio Gaúcha e de seu envolvimento com a música popular brasileira. Não tive medo, peguei meu violãozinho e fui ao seu programa.
Pouco antes de chegar ao estúdio de gravação recebo uma nova ligação do Glênio: “Para abrir o programa quero uma música alegre, tudo bem?”, tudo bem. Logo que cheguei ao estúdio ele me chamou para uma sala e disse que queria me ouvir tocar e, não sei bem ao certo o motivo, esqueci de seu pedido de música alegre e toquei As Rosas não falam. Nem bem completei o primeiro verso e fui interrompido: “Eu pedi uma música alegre. Essa música não é alegre. Não tem outra?”. Toquei o início de uma canção minha chamada Expressão de Compositor, também não é alegre mas foi o que pude tocar. Fui novamente interrompido: “Essa eu gostei. Mas não entendo porque os músicos ficam repetindo o refrão, é tão óbvio! Toca de novo, sem repetir o refrão!”. Eu já estava tímido e por isso não conseguia olhar para o Glênio, fiquei tocando e olhando para o braço do violão: “Tem que ter contato visual. Assim não dá! Tu não estás pronto pra tocar no programa. Deixa eu ouvir teu CD?”. Glênio pegou o CD, levantou-se e foi em outra sala para ouvir o disco. Voltou em alguns minutos.
“Olha, ouvi teu disco, está bem diferente do que ouvi aqui. Está bom, quem sabe não colocamos o disco para rodar no programa?”. Fiquei aliviado com a sugestão, eu já estava nervoso com a situação de tocar ao vivo. Refleti sobre a condição de Nelson Gonçalves, Elis Regina – Glênio conheceu os dois e muitos outros – sabiam cantar bem em todos os momentos, tinham preparação vocal e performática, artistas impecáveis. Compreendi que estamos em um momento problemático de nossa música, entramos no estúdio de gravação e temos diversas alternativas tecnológicas para mascarar nosso despreparo e, quando não utilizamos os recursos disponíveis em software, podemos recortar milhares de vezes nossas vozes, frase por frase, palavra por palavra, colando e copiando as partes que ficaram boas.
Já na cabine do estúdio da Gaúcha, combinei com Glênio sobre nosso diálogo no ar e trinta segundos antes de entrarmos com o programa recebi a advertência: “Nosso programa é ouvido em diversos países. Tu tens que estar preparado para falar sobre tua música.” Falei alguns minutos, respondi suas perguntas e depois fizemos intervalo. Glênio fora dos microfones: “Tu te expressas muito bem falando. Se tua apresentação musical tivesse metade da desenvoltura que tu tens falando, tu serias um grande músico”. Pensei que seria melhor entender como elogio.
Ao final do programa, ainda no ar com quase todo o disco rodado, Glênio agradece minha participação e coloca minha regravação da música As Rosas não falam, dizendo ser a canção preferida de sua esposa e que, naquela noite, fazia um ano que ela havia falecido. Compreendi então o desconforto daquela noite. Chamamos um táxi e eu estava atrapalhado com o violão, mochila e outras coisas. Glênio desceu comigo até a frente da rádio, fazia muito frio e a madrugada estava com ar soturno. Gentilmente segurou meu violão o tempo todo e pediu desculpas por seus comentários ásperos: “Sabe Paulinho, As Rosas não falam era a música preferida dela e hoje faz um ano...”. Esperou o táxi uns quinze minutos comigo.
Isso é tudo que vivi com Glênio Reis e tudo que posso lembrar, depois nunca mais conversamos. Uma pena. Quando gravei minha canção Expressão de Compositor lembrei de sua sugestão e não repeti o refrão mais de uma vez. O disco Expressão de Compositor foi gravado com muitos músicos, entre eles o amigo Elias Barboza, rapaz que Glênio admirava. Hoje não fico nem mais um dia sem tocar ou cantar, meus músculos e minha mente não podem resbalar. Devo me expressar musicalmente com qualidade. Acredito que Glênio me ensinou isso, foi honesto com minha arte.
Hoje Glênio faleceu. Não recebi mais convites para voltar em seu programa, tantos anos se passaram e desconfio que nem lembrava de mim. Eu poderia comparecer em seu velório e tocar para ele ao lado de meus amigos músicos. Depois pensei melhor: “talvez ele não gostasse de me ouvir tocar. Vou escrever, quem sabe assim ele gosta.”
com carinho ao radialista que foi meu professor