A PEIXADA E OS VERBETES

Há alguns dias, fiz um comentário em rede social, página de uma amiga, em que usei o termo “judiação”. Após o comentário, pus-me a pensar no referido termo e, confesso, tive receio de ser alvo de comentários provocados pelo que hoje se denomina “politicamente correto”. Obviamente, não tive intenções preconceituosas ao utilizar a palavra, pois há muito o verbo judiar dissociou-se do sentido pejorativo, que carregava em episódios do Novo Testamento.

Explico, caro leitor, em que situação usei o verbete, para que entendam a verdadeira intenção dele. Ao ver a foto de uma mesa posta, com uma suculenta peixada, pratos e guloseimas convidativas de um saboroso almoço em família, pela total impossibilidade de estar em torno daquela mesa, exclamei: isso é judiação! Exclamação totalmente inocente de quaisquer outros significados, que não fossem condizentes com a vontade de sentar-me àquela mesa e saborear o peixe. Seria do São Francisco? Não sei, mas o que importa é que tive vontade de juntar-me à família naquele almoço.

O lexicógrafo Francisco da Silva Borba, do Dicionário UNESP do Português Contemporâneo, alerta para o patrulhamento desmedido do uso linguístico. Afirma ele que palavras são neutras (fóricas) e que o que pode definir seus valores positivos ou negativos (eufóricos ou disfóricos) é a contextualização delas.

A contextualização das palavras que usamos diariamente envolve diversas áreas do conhecimento, entre elas, o comportamento, a biologia e a cultura do homem. Desde que nascemos, vamos adquirindo cultura e cada qual, em sua vivência e convivência, recebe-a pelo principal canal de recepção, ou seja, pela comunicação.

Recentemente, tivemos sério policiamento à obra de Monteiro Lobato, consequência de impensada abertura de caça às bruxas, sem que fossem realizados estudos comprometidos com a pesquisa e abordagem de realidade da época de tais escritos. Principalmente, que fossem analisados os verbetes utilizados por Lobato e se neles havia intenções pejorativas.

Em O Rancor dos Dicionários, Josué Machado mostra que na primeira metade do século XX, “podiam-se compor sem problemas marchinhas, sem a carga de azeda intolerância de hoje”. Todavia, atualmente, tais marchinhas são evitadas e, dessa forma, não se corre o risco de cometer alguma infração ofensiva a alguém.

Observamos, portanto, que o uso de determinadas palavras merece ser entendido de acordo com a situação em que elas são empregadas e seus significados, apreendidos de acordo com a informação que desejam transmitir.

Quando li, pela primeira vez, o Poema em linha reta, de Fernando pessoa, tinha eu quinze anos, mais ou menos. Lembro-me de que estava no 2º ano do Clássico. Fiquei surpresa com o termo “porrada” logo no início do poema (nunca conheci quem tivesse levado porrada). Do alto de minha ignorância, não entendia como um poeta que vivera havia tanto tempo, usara uma palavra considerada, por mim, tão atual. Mal sabia eu que a dita origina-se de “pancada com a porra”, uma clava de pau curto, com formato de punho fechado. Daí, porrete, porrinha, porretada. Hoje, quando se usa o verbete “porra”, estará alguém pensando em “clava com formato de punho fechado”?

E o verbete "coitado", seremos punidos por sua origem, quando o utilizarmos? Enfim, são tantos que foram agregados à língua portuguesa e que tomaram outro rumo significativo, que se formos analisar suas origens, teremos que abandonar muitos deles.

Não se pode negar que existem sutis discriminações em determinados textos, entretanto, há palavras que se agregam em nossa língua portuguesa, de forma tão natural, que ao pronunciá-las não nos preocupamos com suas origens e significados, pois a real intenção delas é inocente de preconceitos ou maledicências.

Depende, na verdade, do filtro perceptual de quem as utiliza e também de quem as recepciona, para que não haja escusas intenções nas entrelinhas.

O que me provocou aquela mesa apetitosa foi uma vontade enorme de fazer parte dela e de estar entre os comensais daquele domingo. Na impossibilidade da realização de tal desejo, “judiação” foi a única exclamação que me ocorreu. Fiquei, verdadeiramente, com pena de mim e não é necessário dizer que não houve outra intenção.

Dalva Molina Mansano

Indicações para leituras: Revistas Língua Portuguesa nº 48 – Ed. Escala e Língua Portuguesa nº 78- FNDE.

Dalva Molina Mansano
Enviado por Dalva Molina Mansano em 16/08/2014
Reeditado em 16/08/2014
Código do texto: T4925603
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