Reminiscências de Ciro Pessoa
Neste dia, há exatos dois anos, um de meus grandes mestres, Ciro Pessoa, atravessou os umbrais do Great Unknown.
Não é desconhecida daqueles que tanto leem-me quanto conhecem-me, assim espero, a enorme admiração que tinha (e ainda tenho, obviamente, mesmo depois de sua morte) por este cantor, poeta e, acima de tudo, ser humano fantástico ao qual devo minha existência; pois comecei a existir apenas quando eu próprio fui introduzido aos palácios da Poesia, e o que houve anterior a isto para mim é uma lacuna. Seu álbum “Fósforos de Oxford”, com a banda Cabine C, foi o companheiro constante de minha adolescência – ouvindo-o, escrevi a grande maioria das obras de minha juvenília, e hoje é ele um indelével monumento de uma época muito mais feliz de minha vida.
Mistificado em meus escritos como o grande mestre budista Tenzin Chöpel (nome este realmente adotado por ele), infelizmente nunca pude visitá-lo e passar um prolongado período de tempo em sua residência, como sonhava em ter feito e parcialmente o realizei ao homenageá-lo na “Viagem por São Paulo”; no entanto, tive a imensa honra de encontrar-me pessoalmente com ele duas vezes, e como a realidade pode ser tão intrigante quanto a ficção, transcreverei tudo como exatamente deu-se.
Estava em meu início de carreira, como de fato registrei na “Viagem por São Paulo”; contava então com alguns poucos poemas em meu nome e o manuscrito inacabado do “Camila”, que mostrei timidamente a ele achando que, em paga de minha audácia por querer misturar-me com os gênios, seria rechaçado como um “lowly worm” e afogaria em meu âmago a centelha poética que mal se acendera –enganei-me redondamente…! Fui tratado com muita indulgência e um carinho quase que paternal, e supus que estava no caminho certo. Por mais áspero que fosse, com as bênçãos de uma mente criativa daquele calibre, podia imaginar que os frutos de meu labor seriam dulcíssimos; várias vezes fui provado enganado, pois os doces frutos que obtive foram muito poucos. Apesar disto, foram magníficos frutos, e prefiro a eles mais do que a qualquer outra glória terrena mais esplendorosa.
A partir daí, pude conhecê-lo pessoalmente pela primeira vez em 2012, quando veio cantar em minha cidade: fui vê-lo em presença de uma linda amiga dos tempos da faculdade, J…, de quem tanto gostava mas que, hoje em dia, pouco me significa por motivos tristes demais para serem relatados – pelo menos por enquanto. Ela e eu o vimos à distância, e fomos ávidos a seu encontro – eu tremia de medo, ou, melhor dizendo, temor reverencial, pois não sabia como agir perante aquela figura tão imponente a meus olhos de adolescente. Como haveria de saudá-lo, oferecendo-lhe uma oblação digna do deus que era? Ao ver-me, foi ele quem tomou a iniciativa, e deu a mim e à minha amiga um abraço cheio de calor. Disse-nos que ainda tinha uma boa hora antes de seu show, e convidou-nos ao quarto do hotel onde se hospedara para que nos divertíssemos – compramos alguns comes e bebes, partimos ao hotel e lá ficamos declamando poesia em voz alta; J… cintilava de beleza e feminilidade, meu mestre refulgia na majestosidade de sua idade e talento, e até eu senti-me brilhar na companhia daquelas duas pessoas tão queridas a mim.
Vi-o de novo três anos depois, no lançamento de seu livro “Relatos da existência caótica”; viajei a São Paulo com um outro grande amigo, segunda vez que visitara a cidade depois de 2011, mas apenas desta vez pude apreciar melhor a beleza de suas trevas, desde então sentindo-me em casa sempre que sou compelido a lá retornar. A festa de lançamento do livro se daria num bar em Pinheiros cujo nome infelizmente escapou-me da memória, mas até onde consigo recordar-me tinha um ambiente agradabilíssimo e boa cerveja. Fui cumprimentado com a usual alegria por Pessoa, recebendo um exemplar autografado de seu livro que ainda hoje guardo com muito carinho, e travei breves diálogos com sua esposa – não fora tão íntimo dela quanto de Pessoa, mas era uma mulher bonita e bem-humorada. Sei que acabaram passando por problemas conjugais posteriormente, o que me entristeceu em demasiado; não posso, porém, comentar sobre, já que conheci-os como amigos e músicos, e não como um casal – e mesmo que pudesse não o comentaria. Fofocas de matronas a respeito do casamento de tal ou tal indivíduo nunca foram de meu interesse, e apenas estaria desonrando a memória de meu mestre se rebaixasse-me a este grau.
Ansiei muito por um terceiro encontro, a fim de que realmente passássemos uma temporada juntos e pudesse eu dar-lhe um exemplar do “Camila”, que fora lançado um ano depois com uma recepção no mínimo morna, mas até lá meu entusiasmo por vê-lo publicado já havia diminuído e o lucro que obtive com suas vendas pareceu-me palha se comparado à minha ambição principal: fazer a maldita garota gostar de mim. Ainda assim, foi o primeiro fruto que colhi após tanto regar os áridos campos de minha inspiração com meu suor e lágrimas, e teria gostado de deixá-lo ciente que graças a ele pude realizar tal conquista. Obrigações, no entanto, acabaram por interromper nosso contato, e durante seus dois últimos anos de vida mal nos falávamos – inclusive foi de J… que ouvi a notícia de sua morte, e só Deus sabe como torturei-me por não ter estado lá em suas últimas horas.
Vi-me só, órfão; mal tive forças para fazer qualquer coisa nos dias subsequentes – mas vi que chorar não honraria apropriadamente sua presença na Terra. Sua vida havia sido uma de constante criação, então minha oferenda mortuária haveria de ser alegre: trabalhei em “Satori” por uma semana, tendo acabado de reler a “Divina Comédia”, e dentre tantos poemas que vim a redigir, elenco-o como um dos menos piores junto ao “Alceste”. Despedi-me de meu mestre do modo digno que queria, e meus pesares se dissiparam – “mais forte do que a morte é o amor”, afinal.
Há quem chame-me de gênio, e alguns até sentem inveja de meu so-called talento. Em verdade, divido meus textos em duas categorias: os que arrependo-me de ter escrito e divulgado ao público, e os que são tacanhas flores de lótus flutuando num negro lamaçal. Sinto-me quase sempre como na gravura de Fuseli, oprimido pelo insuportável peso dos colossos do passado que me precederam, e aos quais tento igualar-me tão presunçosamente imitando a seu estilo como uma criança. Quando jurei que haveria de ser escritor, eu sabia! Sabia de tudo aquilo que se abateria sobre minha cabeça, de como viveria em combate perpétuo com o Deus-Dinheiro e precisaria fazer aquilo que mais odiava, agregar valor financeiro à minha obra. Às vezes interrogam-me se gostaria de ter feito qualquer outra coisa, que fosse mais rentável e acarretasse menos dissabores para com o mundo moderno, mas minha resposta é sempre negativa.
Ora! Meus escritos abriram-me portas fantásticas. Graças a eles pude conhecer muitos e queridos amigos; alguns passageiros, outros para toda a vida, mas cada um deixou uma marca em meu coração que carregarei até a morte. Um destes amigos foi ninguém mais, ninguém menos que o fundador dos Titãs e do Cabine C, e se este verdadeiro titã (trocadilho intencional, just for the sake of it) dignou-se a promover meu trabalho, só pode significar que devo escrever, independentemente das adversidades, e só tenho a agradecê-lo por seu carinho. Se existe um Além, espero muito que seja como a “cidade que flutua no ar, onde a Natureza faz o que lhe convém” que cantou tão belamente em “Anis”, e quando chegar minha vez, possa ir a seu encontro num veloz tapete voador.
(São Carlos, 5 de maio de 2022)