Equilibrista

Cinco da tarde. A chuva traz cores sombrias ao céu espelhado nas ruas asfaltadas. Cidade vazia, um vento cortante, uma esperança, um pensamento esquecido... Quase como uma sombra que se multiplica, a trajetória de um louco encontra o destino em um beco sem saída e fica suspensa na tênue linha da razão abandonada ao meio-fio.

Um ranger de porta, talvez uma fresta escondida na lembrança do personagem. O homem equilibra um verso no limiar do horizonte tardio. Uma solidão reescrita na face nua... Uma marca de expressão se sobressai no rosto talhado de tempo. Sorri um riso adormecido, uma recordação reanima o corpo e o poeta lança um grito cerzido de palavras mudas espelhadas no chão.

Um pingo de chuva cai no escrito imaginário, uma lágrima reencontrada no caminho. Uma trovoada interrompe o silêncio suspenso. Mais um pensamento está fadado ao esquecimento. Descompasso, o coração dispara em dissonância com os pausados passos. Uma encruzilhada e mais um beco sem saída. Perdido de suas representações, o louco abandona sua sombra. Liberto de si, percebe que o porvir está além da limitada reprodução e ousa trilhar outros espelhos já anoitecidos.

No portão, um ancião cuida das horas. Deixa o olhar vagar nas ruas desertas e reencontra, no corpo cambaleante, um movimento juvenil. O desejo de uma antiga ruga abre uma janela iluminada no dia cinza. Um sorriso embriagado de sonhos rasga o desamparo.

Um carro, com os faróis apagados, surpreende os personagens. Passa como passam todos os movimentos. Lança a água do asfalto e lava o instante com um susto anônimo. As janelas escuras aprisionam algumas faces, talvez um solidão, talvez uma loucura... O carro desaparece na esquina de um horizonte anoitecido.

O poeta atravessa o poema de sua existência na calçada e o ancião compreende, numa leitura silenciosa, que a tarde desvirginada os condenou ao único reflexo.

Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 10/09/2005
Código do texto: T49238