MERENDEIRAS COR-DE-ROSA
Na década de 60, a maioria das crianças frequentava a escola pública e usava o mesmo uniforme: as meninas, blusas brancas com manguinhas, saias vermelhas pregueadas e gravatinhas da mesma cor, contendo listinhas brancas, indicativas das suas séries; os meninos diferenciavam-se pelas bermudas e gravatinhas, ambas na cor azul escuro.
Como éramos de famílias de classe média ou pobre, quase todas nós, na hora do recreio, nos alimentávamos ingerindo a merenda fornecida pela escola. Não posso falar pelas outras, mas na “Vasco Fernandes Coutinho”, em Vila Velha, ES, sempre tínhamos no cardápio o que eu odiava: mingau de triguilho feito com o leite desnatado, enviado pelos Estados Unidos.
O gosto lembra o de Molico e era insuportável ao meu paladar. Nesses dias, para enganar o estômago, o jeito era pedir um biscoito para as colegas cujas saias e blusas de fina cambraia eram impecavelmente passadas. Elas eram “ricas”, pois possuíam, inclusive, duas coisas que eu sonhava ter: merendeiras bonitas e caixas de lápis de cor, grandes, com 24 unidades.
Certo dia, eu percebi que estava aberta a porta de uma das salas que ficava próxima à minha. Olhei de relance e vi muitos objetos, provavelmente, esquecidos pelos alunos: blusas, sombrinhas, merendeiras feiosas e umas três cor-de-rosa, muito bonitas. Meus olhos se acenderam!! “Que absurdo! Quem poderia esquecer ali umas lindezas como aquelas, meu Deus?!”, pensei.
Passei a torcer para aquela porta estar aberta e eu poder vislumbrar se os donos tinham levado os seus pertences. Fiz isso durante o ano todo e a cada noite eu sonhava com aquele recinto. Em meus sonhos ele parecia um sótão, cheio de coisas lindas, com muitas caixas de lápis de cor, daqueles que, uma vez molhados na saliva, davam uma cor viva aos desenhos, tais como os feitos por minhas amiguinhas “ricas”, Isis e Constância.
Em outubro de 1967, eu já sabia que meu pai havia sido transferido para cuidar do serviço militar em Linhares. Lembro-me da tristeza que me invadiu, pois eu gostava muito da minha professora e da minha escola, e hoje eu sei o porquê: os elogios que eu recebi da dona Celeste, pelas minhas participações nas aulas ou nas apresentações, elevaram minha autoestima e me fizeram querer merecê-los sempre.
Em dezembro daquele ano, indo para minha sala, percebi que, uma vez mais, estava aberta a porta do depósito de achados e perdidos, e vi que as três lindas merendeiras continuavam lá. Senti vontade de chorar, mas reuni forças para me aproximar da porta, olhar para a senhora que estava lá dentro e dizer: “Dona, há algum tempo eu perdi uma merendeira na escola. Posso entrar para ver se ela está aqui?”.
Ela aquiesceu com um aceno de cabeça, e eu, com o coração disparado por um misto de vergonha e medo, entrei e olhei os objetos que havia ali: todos empoeirados, feios ou velhos, completamente diferentes daqueles que enfeitavam os meus sonhos. Detive-me nas três merendeiras cor-de-rosa e tive a mesma decepção, pois a visão de longe encobrira a sujeira e os arranhões que elas tinham.
Agradeci àquela senhora e saí do recinto com uma lição que me acompanha até hoje: nosso objeto de desejo pode perder o glamour, quando nele batem os raios de sol.
Ao longo de minha vida, por diversas vezes, encontrei “merendeiras”, que julguei serem lindas, mas antes que comêssemos um quilo de sal juntas, meus “olhos” treinados perceberam a podridão de suas almas. Sempre que isso acontece, eu as deixo esquecidas nos porões decorados com teias de aranhas, pois esse é o local onde bem merecem estar.