Um Debate Sobre Música

Numa terça-feira acordei com o telefone aos berros. Chamava desvairado da parede da copa, onde ficava pendurado. Levantei e corri para atender.

-Alô?

-Ô “errado”! beleza?

-E aí Vinícius?

-Nó véio, nem te conto! Adivinha quem me ligou ontem?

-Quem?

-Fernando.

-E o que ele falou?

-Ele me convidou pra participar de um debate domingo na rádio.

-Pô véio! Que doido! E sobre o que vão discutir?

-Sobre música.

-Alguém mais vai participar?

-Não sei...

-Podiam chamar o Enzo.

-Vou vê com ele. Mas então fica assim, ouve lá.

-Que horas vai ser?

-As quatorze horas.

-Falô.

Esse foi o assunto da semana. Chegado o dia do veredicto, reunimos no galpão onde acontecia os ensaios semanais da banda OPNI. Estavam presentes, Enzo, Dezinho, Ismael, Marcinho, Zucão, Adriano, seu radinho a pilha e eu.

-Silêncio! Silêncio! Já vai começar.

-Pô galera, que mal cheiro!

Após a vinheta, o locutor pronunciou:

-Boa tarde prezados ouvintes! Eu sou o Fernando Pereira Campos. Hoje no “Arquivo do Rock” temos o prazer... –após uma pequena pausa o mesmo corrigiu. –Melhor dizendo, temos o orgasmo de receber estes ilustres cidadãos novaerenses, para falarmos um pouco sobre música, política e outros temas interessantes.

Primeiramente eu gostaria desde já agradecer a presença de todos vocês. Vinícius, Mônica, DJ Wallace e Ganso.

-Boa tarde Fernandinho! Eu só vou te pedir uma coisa.

-Fala saudoso Ganso!

-Não me deixa sentar ao lado desse preto nazista. –O pinguço fazia questão de provocar Vinícius. Certa vez estávamos ensaiando no galpão quando a fome começou a apertar. Dezinho sugeriu que fossemos a padaria comprar alguma coisa. Fizemos uma vaquinha como se diz, e saímos. Chegando lá encontramos o cana brava, que foi imediatamente implicando com a camisa do coitado. Disse gritado: - Preto nazista! - Mas Vinícius não deixou barato. Contestou chamando o homem de alcoólatra. Depois soltou um arroto. O beberrão completou, dizendo que além de preto nazista, era porco. Tudo devido a uma cruz de malta mal interpretada dentro de uma placa de regulamentação.

-Tudo bem Ganso. Pra evitar confusão, vou te colocar ao lado da Mônica. Senhoras e Senhores, este debate como as demais CPI’s terá algumas regrinhas básicas. Vou fazer uma pergunta e cada um irá dispor de três minutos para responder. A réplica será concedida em tempo igual. Basta levantar a mão. Podemos começar?

-Claro mano! –Disse o DJ.

-Vocês acham que algumas letras de rap fazem apologia ao crime? Tem a palavra o DJ Wallace.

-Pô mano! essa pergunta até me ofende. Eu não curto muito pancadão, tá ligado? Meu negócio é mais uma MC Cacau, um Teco e Buzunga... Mas eu ouço bastante uns grupo de Hip Hop como o Racionais MC. As letra dos cara fala sobre a realidade, o submundo. Por isso que a mídia detona mano! Eles qué é vê o povo se acabano.

-Agora com a palavra, Mônica.

-Ahahahah! Tô um pouco tímida. Em primeiro lugar eu gostaria de mandar um abraço pra minha mãe, pro JF, pro Cléber, pro Benigno, pro Ruuuuuuuubens, pro Felício, pro Oswaldo, pra Laura, pro Gilberto, pra Luciene...

-Fala logo Mônica, senão você vai perder a vez.

-Pra todos da NES. Qual era mesmo a pergunta?

-Perdeu a vez. Passo a palavra ao nostálgico Ganso.

-Aí Fernandinho! Rape é da hora maluco! Caramba, tô com a garganta seca nessa porra aqui meu.

-Agora é a vez do Vinícius falar.

-Éééé uai!

-Fala meu caro Vinícius!

-Aí, tipo assim né. Os caras fazem umas letras conscientes, falam de problemas sociais, condenam o sistema. Isso perturba muita gente. Eu acho que depende do saber de cada um. O cara mal instruído, independente de viver num ambiente periférico ou não, pode derepente se deixar levar. Mas, sem dúvida a mídia associada ao governo exerce influência veemente sobre tudo no nosso país. Quando surge algum grupo protestante, que prejudica os seus interesses, logo eles tentam abafar de alguma maneira, seja ligando as letras ao tráfico ou a outras atrocidades. Por que ninguém incomoda por exemplo com a música “Festa No Apê”? Se é que se pode chamar aquilo de música. O que acontece é uma espécie de ditadura camuflada. Você acha que na época do impeachment do Collor o povo saiu às ruas porque quis? A Globo foi quem arrancou o povo de suas casas.

-Discordo! Discordo! Isso é coisa de nazista Fernandinho. –O bebum protestava socando a mesa.

-Aí Boy! Não fala mal do funk na minha frente. –O DJ também se irritou.

-Calma. –Ordenou o locutor. Em seguida deu continuidade à polêmica. –A segunda pergunta é a seguinte. Qual a importância de Cazuza e Renato Russo no atual cenário brasileiro?

-Posso responder. –Candidatou-se a loirinha levantando uma das mãos.

-Fique à vontade. –Autorizou o radialista.

-As crianças estão crescendo tendo a oportunidade de conhecer o trabalho remunerado desses artistas.

-Remunerado? Não entendi. – Está manifestação foi inevitável.

-Renumado... refamado... ah! tanto faz. O importante é que eles vão poder curtir e dançar até ficarem com as pernas doloridas. A “Difusão” toca música deles.

-Posso falar agora Fernando?

-Claro Vinícius, o microfone é todo seu.

-A palavra é renomado Mônica. –A garota untou o rosto com nuvens carregadas, não gostava muito de ser repreendida. - Cazuza e Renato Russo são insígnias de extrema importância neste momento em que o Brasil enfrenta alguns de seus problemas veneráveis, como a fome, a corrupção e a recuperação da cidadania. Na época deles, “nossa piscina estava cheia de ratos, a gente não tinha data para comemorar, os dias eram de par em par, não tínhamos medo do escuro, mas deixávamos, por via das dúvidas, as luzes acesas. Embora tenham exercido sua arte já depois da ditadura, eram herdeiros do obscurantismo que assistiram na infância. Hoje, quando a gente vê filhos que matam pais, netos que matam avós, famílias que se matam por causa de droga, dá para lembrar dos meninos brasilienses que espancavam sem motivo...”

-Tempo esgotado. –Interrompeu o locutor.

-Deixa só eu concluir a última oração?

-Qual oração? Isso aqui é uma rádio, não uma igreja. Desde quando nazista sabe rezar? –Prolatou o cachaceiro.

-Fica na sua Ganso.

-Trinta segundos. –Estabeleceu Fernando.

-Dá para lembrar dos garotos de Brasília que brigavam sem razão, “no meio da rua, antes daqueles que queimaram o índio, os filhos de papais que se sentem e se sentiam donos do mundo”.

-Ganso, agora sim, pode falar.

-Renato Russo, Cazuza... Eu curto é “Mário e Banda” morô?

-Fernando?

-Fala célebre Wallace.

-O moleque disse tudo aí ó! Renato Russo mais Cazuza mano, os cara cantava pra caráio!

-Partamos agora pra terceira perguntinha. Está é sobre política. Se fosse para vocês darem uma nota pro Lula, de um a dez, qual nota vocês dariam e por quê? Com a palavra, Vinícius.

-Dois e meio prum governo que hesita diante de uma crise. Erros graves foram cometidos por ele no ápice das alterações, não sei se esse caminho já foi totalmente percorrido. É um covarde que não assume a realidade dos fatos.

-Eu vou bater nesse cara. –Ganso ameaçou.

-Violência aqui eu não vou permitir. –Fernando advertiu de imediato.

-Mas esse Hitlerista tá falando mal do governo! Com qual direito ele abre a boca pra ofender o meu PT?

-Com o direito que me dá a democracia. –Respondeu Vinícius.

-Torna a chamar o presidente de covarde pra você vê! Chama se for homem! –Ganso insistia na provocação.

-É UM COVARDE, UM BUNDÃO!!! –Vinícius não se intimidou com as ameaças. Também, o homem mal parava em pé de bêbado.

-Óia que eu vô aí!

-Pode vir... vem! Você é um alcoólatra. –O episódio da padaria se repetia.

-Se vocês não manterem a ordem vou ser obrigado a encerrar o debate. –O clima só esfriou depois dessa ameaça feita pelo locutor, que evitando um novo sururu partiu para a quarta pergunta. -“Sobre a Transposição das águas do Rio São Francisco foram publicadas as seguintes opiniões de pesquisadores do IBAMA”: -“Projeto desnecessário (inútil)”. – “Projeto inviável econômica e socialmente e com alto custo ambiental”. – “Projeto prejudicial ao Nordeste e ao Brasil”. Vocês concordam com essas opiniões? Mônica, pode opinar.

-Lógico que não. Como posso aceitar uma tolice dessas? Eu acho que os demais políticos têm o dever de ajudar os governantes nordestinos. Muitos são fazendeiros na verdade, mas ninguém tem tanto dinheiro assim pra abrir um poço por dia. Se desviarem o rio pra lá vai ser uma boa.

-Eu concordo com a mina, boy! Tem que matar a sede do povo mermo aí! –O DJ deu seu parecer.

-Não diga besteiras Wallace. –Vinícius mostrava-se indignado.

-Colé maluco! Tá me tirano, mano?

-Eu não estou tirando ninguém. Só fico enfezado quando vejo pessoas modestas serem facilmente manipuladas. Mas, vocês não têm culpa.

-Cê tá tirano!

-Negócio é seguinte! Não adianta fazê greve de fome, de sede, de gole, de muié, de porcaria nenhuma. O homi vai virá o rio pra lá e pronto. Mas, eu tô qui nem aquela música. Tô nem aí! Eu não bebo água mesmo. –Disse o bebum.

-“Vamos celebrar a estupidez humana.” –Protestou Vinícius.

-Cê tá insinuando que eu sou um estúpido?

-Não, imagina! É só impressão sua! – Ironizou.

-Fernando, esse cara tá provocando demais. –Advertiu Ganso.

-Fiquem tranqüilos. Vinícius, menos por favor. –O locutor chamou a atenção do nosso amigo.

-Desculpa Fernando, foi mal.

-Continua Ganso.

-Valeu Fernandinho, mas já terminei minhas consideração. –Algumas vezes o pinguço tentava falar difícil. Quase sempre escorregava.

-Vínícius, você tem a palavra agora.

-Valeu Fernando. Quero dizer que eu concordo plenamente com cada uma das opiniões citadas pelos pesquisadores.

-Preto, nazista e louco. –Resmungou o cachaceiro.

-Branco, alcoólatra e burro. –Atacou Vinícius.

-Gente, mais respeito por favor. –O locutor tentava por ordem na casa. Vinícius continuou.

-Vários afluentes do rio São Francisco já se encontram secos ou se não bem degradados. Minas Gerais por exemplo é um Estado que certamente sofrerá as conseqüências com uma possível transposição do rio, já que grande parte da energia elétrica gerada no nosso estado é proveniente do mesmo. Se o governo quer realizar uma transposição deveria começar recuperando os afluentes do rio primeiramente. Eu acho também que eles deveriam reunir-se com os pequenos agricultores sertanejos e não somente com os grandes empresários, fazendeiros e políticos do local, para que na região não se estabeleça um comércio de água, causando um grande impacto social, o que provavelmente ocorreria, como já acontece em alguns locais onde foram implantados poços artesianos pelo atual governo.

-Agora você falou bonito Vinícius! –O radialista ficou pasmado.

-Tenha piedade Fernando! Roqueiro é tudo doido mesmo. –A loira indignou-se.

-Presta atenção menina!

-Presta atenção você. –Respondeu ela à censura do nosso amigo.

-Você é uma mulher do sistema, não sabe o que diz. –Continuou Vinícius.

-Aí maluco, respeita a mina.

-Obrigada Wallace, mas eu posso muito bem me defender sozinha.

-Vai! Dá logo um tabefe na cara dele! –Ganso quis colocar lenha na fogueira mas...

-Aaaaaai sua louca! Estúpida! Loira burra! – ele foi que acabou saindo com a mão da moça tatuada na face.

-A mina tem atitude. –Cochichou o DJ.

-Você também quer levar?

-Relaxa mina!

-Agora é dois nazista nessa porra. –Disse o bêbado esfregando a bochecha. –Toma cuidado Fernandinho!

-Meu Deus! Peço desculpas aos ouvintes por essa baixaria. –Acabrunhado o locutor pronunciou. No galpão, Enzo explicava por que havia recusado o convite.

-Não dá pra discutir com esses conformistas. Ainda bem que eu não fui. Sei de uma coisa que iria chocar o mundo. –Dezinho ficou curioso e resolveu perguntar.

-Que coisa é essa Enzo?

-Uma galinha gigante!

-Tá certo. Você dá pra comediante!

-Sai fora! –Enquanto isso, a confusão na rádio se intensificava.

-Como eu gostaria que você tivesse nascido homem. –Disse o bêbado encarando a garota.

-Cê tá ficano loco mano! –O DJ não pôde se conter diante da cólera do atacado.

-Por que maluco? –Quis saber Ganso.

-Seno mulher ela já te dexô desse jeito! –Foi quando Vinícius começou a rir.

-Tá rindo do quê? Por acaso eu tenho cara de palhaço? –Interrogou o beberrão.

-De palhaço não, mas de outra coisa! –Respondeu Vinícius.

-Seu nazista de uma figa! –O bêbado gritou. Logo após, soltou da cadeira avançando no pescoço do nosso amigo.

-Solta! Solta! Ai meu Santo Cristo! Você vai matar ele! –Fernando ficou desesperado. Agarrando Ganso por trás, fazia o impossível para tentar libertar as mãos do homem. Depois de um inverossímil esforço conseguiu vencer a peleja.

-Tragam um copo com água pra ele. –Falou à secretária.

-Ganso, sinto muito. Mas aqui você não vai cantar de galo. Peço que se retire imediatamente. –O locutor foi irremissível.

-Poxa Fernandinho! Você tá me expulsando? –O beberrote ficou surpreso.

-Vai logo, antes que eu chame a segurança. Isso aqui tá parecendo “Teste de Fidelidade”. –Fernando não relevou. O borracho saiu cambaleando porta à fora. Quando o clima parecia ter esfriado, um novo estalo tomou conta dos estúdios.

-Aaaaai! Essa mina tá de tpm maluco! –O DJ havia ganhado uma “bolacha” daquelas.

-Jesus toma conta! Mal termina um tumulto e já começa outro! Mônica, por que você fez isso? –Perguntou Fernando.

-É que esse sem vergonha passou a mão nas minhas pernas.

-Isso é verdade DJ?

-Mas também a mina vem com um shortinho desse uai! Ninguém é de ferro mano! –O DJ respondeu na maior cara de pau. Em seguida continuou. –Eu devia ter ficado catano minhas latinha! Que diabo eu vim fazê aqui?

-Desculpem, mas eu vou ter que expulsar os dois.

-Eu por que Fernando? –A loirinha ficou ainda mais furiosa.

-Tenha piedade Mônica! Um já saiu com os dentes frouxos. O outro quase vai parar com a cara nas costas. –O locutor respondeu à pugilista.

-Homem é tudo igual! Um defende o outro. –A galega saiu bramando estás palavras.

-Vinícius, pode fazer suas ponderações finais. –Concluía Fernando após pedir mil desculpas aos ouvintes.

-Eu gostaria de mandar um alô pra rapaziada que tá lá no Sagradão ouvindo a gente. Enzo, Dezinho, Zucão, Ismael, Marcinho, Adriano e Lauro. Pra todo mundo de Nova Era que me conhece. Agradeço a você Fernando por essa oportunidade e toda a equipe da 104,9. É extremamente importante que espaços como esse sejam abertos para que nós jovens possamos expor nossas idéias.

-Obrigado Vinícius. Eu acho que dessa forma estamos começando a construir uma nação melhor. Dando ao povo a chance de se manifestar também. Ah! Quase me esqueci. Quero dizer que o Adriano mais a Aubriécia ficaram... –Nisso a pilha do radinho acaba. O galpão antes usado para a manifestação da arte, transforma-se num indecoroso rinhadeiro.

-Adriano seu miserável! Eu já desconfiava! –Zucão ficou injuriado com o primo, pois, pensou que ele estivesse saindo com sua namorada. Na rádio Fernando finalizava.

-ontem a tarde inteira preparando várias perguntas pro debate. Muito obrigado ao Adriano e a Aubriécia por esse admirável trabalho.

-Fica esperto Zuca! Você... –Coitado do Adriano! Não pôde nem se defender. Quando começou a falar, tomou uma “baixada” no traseiro seguida de um “pedala Robinho”.

-Calma Zuca! Cê tá fora de si! -Gritava enquanto corria.

-Meu contrabaixo! Volta aqui! –Ismael saiu apressado atrás deles. Parecia um daqueles filmes do Jackie Chan. Três malucos histéricos correndo no meio da rua.

-Isso é uma blasfêmia! –Adriano tentava acalmar o berôncio.

-Devolva meu contrabaixo! Se você quebrar vai pagar! –Ismael avisava com as mãos para o céu. Na porta do galpão, Enzo e Marcinho rolavam no chão de tanto rir.

-O que está acontecendo? –Dezinho vinha do toalete e não estava entendendo nada. Os risos não me deixavam falar, mas, respondi apontando o dedo em direção ao espetáculo. Ao contemplar aquela cena burlesca, Dezinho juntou-se a Enzo e Marcinho. O perequê era tão engraçado que a aspereza do passeio fora completamente ignorada por eles. Giravam de um lado para o outro como sobre penas. As janelas das casas ficaram repletas de curiosos. Uns hipnotizados, outros servindo de fundentes à contenda. Não me lembro bem como isso tudo terminou. Só sei que a banda OPNI passou um bom tempo sem ensaiar por falta de baixo. Levaram o instrumento à inúmeras oficinas, porém, era caso perdido.

Barbosa, Lauro Gabriel.

Crônicas Cômicas / Lauro Gabriel Barbosa. - 2005.