Cabeças Vão Rolar
- Você ficou sabendo seu Manoel !?
O portuga respondeu detrás do balcão:
- Se tu me disseres saberei.
Todos os olhares na padaria voltaram-se para o cavalheiro calvo, de bigode, bermuda, camisa listada e meias três quartos.
- Ontem à noite resolvi ir até a cidade visitar meu compadre, o Zé Goela.
- Mas o que ocorreras com o Zé, homem de Deus !?
- Nada grave. Ele apanhou da mulher novamente. Foi internado às pressas.
- Cachamorrada ! Também aquele tunante não sai “do bodega”. Mal o sol dá as caras e lá está o infeliz, entornando biritas.
- Tem razão seu Manoel. Pela cara do compadre a coisa deve ter sido feia. Eu falei com a dona Giorgina. O melhor seria se cada um seguisse seu rumo. Aquilo ali não tem mais jeito. É caso perdido mesmo. Bebum sem vergonha !
- Tu não podes falar seu Tobias. Meses atrás, viestes me pedir para convencer sua senhora a deixá-lo entrar em casa, e não bebias em um boteco, mas sim, numa taberna, cercado por belas raparigas.
- Este episódio pertence ao passado.
O careca tentou inutilmente dissipar a tal situação embaraçosa. Abanou-se com o jornal que segurava e procurou firmar os olhos no portuga, evitando as caras de riso dos fregueses.
- Pronto, essa prosa descarrilou ! Não vim aqui expor minha vida pessoal.
- Prossiga então com seu relato.
- Posso ?
- Sou todo ouvidos.
- Não só o senhor !
A gordinha que escolhia o pão desapressadamente, apelou:
- Fofoqueira é a mãe !
- E a filha também. Onde já se viu “levar quinhentos anos” para escolher meia dúzia de pães !
O português irritou-se:
- Seu Tobias, não me espanta o freguês !
- Perdoa-me, mas essa gente é insuportável.
- Continue contando. O que aconteceras na cidade fora a contenda do seu compadre ?
- Estava no ponto de ônibus esperando a condução das dezenove horas. Entretanto, achei melhor embarcar na seguinte. Fiz boa escolha ! Havia uns dez lugares vazios ! Quando nos aproximamos do Amansa Doido, um sujeito estranho deu sinal. Carregava um saco plástico preto, trajava uma calça jeans verde-montanha, camisa social e botinas coturno, completamente enlameadas. O cobrador bem que tentou colocar a bagagem do homem no porta-malas, mas por nada ele permitiu que tocasse no saco. Aquela figura excêntrica subiu com o receptáculo nas mãos. Sentou num dos últimos lugares. Advinha qual poltrona ladeava com a dele ?
- Não faço a mínima idéia.
- Justamente a que escolhi ! E o camarada era feio, barbudo, um gato escaldado. Metia medo mesmo. Às vezes me olhava de “rabo de olho”. Eu despistava. Virava o rosto para a janela e fingia distrair-me com os outros carros. Nas primeiras poltronas havia um casal de idosos. O vetusto , meio neurastênico, levava a tira colo um radinho a pilha. Queria saber o resultado de Atlético e Cruzeiro que se enfrentavam no “Mineirão”.
Em função disso, dava maior importância aos intervalos comerciais. A velha cochilava. De vez em quando tomava uma sacudidela do faccioso torcedor.
- Não ronca muié !
Gritava ele.
No fundo do ônibus: aturdimento. E lá me encontrava, inefável, suando frio. Levei a mão para retirar meu lenço no bolso esquerdo da calça. Ele cravou os olhos em mim novamente. Aquele semblante estável e ruinoso era aterrador. Desejei derreter-me e escorrer por debaixo dos assentos. Inacreditável, eu tinha que permanecer ali, tácito, aguardando um conjeturado bote daquela fera. De repente, ergueu-se um odor intolerável. O cobrador continuou imóvel até o momento em que os passageiros começaram a reclamar, abrindo as janelas.
- Senhor, deixa eu colocar esse saco no porta-malas.
Disse o auxiliar de viagens. Mas o sujeito resistia:
- Tira a mão daí. Não vou colocar nada em lugar nenhum.
Enquanto isso, o velho conservava-se atento ao placar do jogo. Pedia silêncio, contudo, era natural ignorarem semelhante apelo. Todos gritavam. Queriam que o cobrador pusesse o homem para fora a qualquer preço. O velho enfadou daquele motim e aumentou o volume do rádio. Suportaria tudo. Qualquer catinga. Menos que sua “raposa” fosse rebaixada. Foi quando escutamos a pavorosa notícia:
- Atenção ! A polícia está a procura de um indivíduo acusado de matar a mulher, três filhos e um cachorro nos arredores do Amansa Doido. Ele estaria usando uma calça jeans esverdeada, camisa social e botas coturno pretas. O delegado responsável pelo caso, informou-nos que os cadáveres estavam decapitados, ou seja, tiveram suas cabeças arrancadas. Há suspeita de envolvimento com rituais de magia negra. Se você encontrar um indivíduo com estas características, disque para o 190.
- Nossa mãe ! Tu passaste maus bocados ! Certamente as cabeças estavam dentro do saco.
Portuga e fregueses. Todos ficaram impressionados com a estória do seu Tobias.
- Ainda tem mais ! No mesmo instante nós rendemos o sujeito. Amarramos seus braços, suas pernas e o amordaçamos. Alguns quilômetros adiante acontecia uma blitz da polícia militar. Paramos e entregamos aos policiais o homem e o saco preto, que não tivemos coragem de abrir. Seu Manoel, teve até gente da televisão ! A propósito, está na hora do noticiário.
Mais que depressa o português ligou a TV para acompanhar a façanha contada pelo amigo.
- Boa tarde !
Pronunciou o repórter.
- Ontem por volta das vinte e trinta, um homem de aproximadamente quarenta e cinco anos foi detido em uma blitz da polícia militar próxima ao bairro jardim Mirim. Segundo informações, o elemento teria sido rendido por populares em um ônibus da linha Lisboa / Centro, após suspeita de envolvimento numa falsa chacina no bairro Amansa Doido, onde foram executadas uma mulher, três crianças e um cachorro. As vítimas “fatais” tiveram suas cabeças despegadas pelo criminoso. Com ele também a polícia apreendeu um saco plástico preto, onde supostamente estariam os crânios. A rádio FM Zabumbada responderá processo por divulgar falso conteúdo, colocando em pânico cerca de cento e cinqüenta mil ouvintes, já que tudo não passou de uma gravação cinematográfica, onde foram utilizados efeitos especiais para a criação do cenário avassalador. O homem foi encaminhado para a 24ª DP e liberado logo em seguida. Não possuía antecedentes criminais e carregava no saco plástico cinco cabeças de repolho.
Barbosa, Lauro Gabriel.
Crônicas Cômicas / Lauro Gabriel Barbosa. - 2006.