Um Sonho Realizado
Em agosto de 1955 eu realizei um sonho que trazia comigo: ser foguista da Cia Mogiana de Estradas de Ferro.
Muitos dirão: mas ser foguista de trens é uma coisa assim tão importante? É, é muito importante, para mim, pelo menos. Eu penso que todos os foguistas e maquinistas em todas as Estradas de Ferro do mundo estão ali, ou estiveram por pura vocação. Têm de ser pessoas que sabem de suas limitações e que encontram na carreira ferroviária um campo enorme para ser útil ao seu semelhante. É necessário muito desprendimento e amor à profissão, pois é preciso abrir mão de muita coisa que para outros seria impossível. Mas eu fui feliz.
Entramos, naquele agosto de 1955, em 10 candidatos a foguista. Depois de alguns dias, 6 já haviam desistido da carreira.
Ao entrar na ferrovia tínhamos de ficar no Depósito de locomotivas, por 3 meses para aprendermos o serviço, que era muito: saber lubrificar as brasagens, colocar graxa nos compressores, carregar o aparelho de óleo que iria ajudar a lubrificar os cilindros das locomotivas, verificar os areeiros para ver se estavam funcionando, pois nas rampas muito compridas a areia é muito importante, e mais algumas coisas que só aprenderíamos trabalhando.
O prazo era de 3 meses no Depósito, mas o meu instrutor, o Senhor Genésio de Barros, que fora um excelente foguista, e que naquele momento, por motivos de doença, estava afastado temporariamente da linha, e que também era muito bom como ser humano, me disse:
“Laércio, eu tenho acompanhado o seu desempenho e vou dizer ao escalante para colocá-lo de limpador na 1ª tripulação que estiver precisando de um limpador e tenho certeza que você não irá me decepcionar”.
Devo dizer para quem não sabe que limpador e ajudante de foguista é a mesma coisa. Assim, depois de apenas 25 dias eu fui escalado para a minha primeira viagem na linha. O trem era o de prefixo P1, de passageiros, Locomotiva 250, movida a lenha e tinha destino a Casa Branca. O maquinista era o Senhor José da Costa Figo e o foguista era o Senhor Manoel de Paula. Essa viagem foi o começo de 30 anos de carreira para mim. Eu estava feliz por estar fazendo parte daqueles que tanto admirava. Fiz parte de muitas tripulações, pois a minha função era dar férias aos ajudantes de foguista nos trens de passageiros. De cada equipe de locomotivas eu aprendia alguma coisa.
Naquele tempo, para nós principiantes, os maquinistas eram vistos como se fossem generais de exército, pois para chegarem a esse posto haviam dado de 35 a 40 anos de suas vidas em cima de locomotivas.
Então, até os maquinistas mais novos os respeitavam, pedindo, muitas vezes, seus conselhos. Só tenho boas recordações de todos com quem trabalhei. Tratavam-me com a um filho e nas nossas horas de repouso nas acomodações da Ferrovia, os maquinistas tinham atenção a todos, e fora das locomotivas diziam: “Fora das locomotivas somos todos iguais”.
O maquinista com quem eu mais trabalhei de ajudante foi o Senhor João Nadark Machado e cujo foguista era o senhor Sebastião José Pedro. Formamos uma família por cerca de 2 anos. A Locomotiva que foi a primeira em que eu trabalhei na linha, a 250, era um modelo também conhecido como "Camela".
Ficou acertado que cada equipe teria a sua locomotiva efetiva. Nós cuidávamos da Locomotiva 250, areávamos os seus metais amarelos da caldeira da máquina com um preparado de tijolo inglês e caol. Areávamos a chaminé e as suas cintas metálicas brilhavam. Passávamos grafite nas partes escuras e a locomotiva parecia gostar daquele trato.
Mas nem tudo foram rosas. O meu maquinista e o meu foguista entraram de férias. E o maquinista que veio dar férias ao Senhor Machado era o Senhor Luiz Lobato, também muito bom, calmo. Sabia como conduzir, mesmo nas horas mais difíceis. O foguista que veio dar férias ao Senhor Sebastião José Pedro era um foguista bem antigo, e que gostava de contar bravatas. Ele confiava no seu tamanho, ofendendo e humilhando os seus ajudantes.
Mesmo nas horas de repouso, em um bar em Ribeirão Preto se reuniam muitos foguistas e maquinistas, e também os ajudantes de foguista. E lá todos bebiam muita pinga e contavam as suas viagens. Nesse local juntavam pessoas de Campinas, de Franca, e também de Ribeirão Preto. Todos das locomotivas.
Nessa viagem com os novos companheiros pude notar que o foguista me tratava com muito pouco caso, nem me chamando pelo nome, e sim por “campineiro”. Eu, com muito respeito, obedecia às suas ordens. Chegamos a Ribeirão Preto, e também fui até aquele bar acima descrito, para “rebater a fumaça” da locomotiva, que era movida a óleo preto.
Pedi um copo de leite duplo, com groselha. Quando o foguista me viu, me chamou e falou: “Meus ajudantes bebem pinga como eu. Você bem mostra que é de Campinas. Eu já mandei vir o seu copo de pinga e se você não beber saiba que eu costumo jogar na cara do camarada. Já fiz isso para muita gente”.
Quando ele estava resolvido a jogar a pinga no meu rosto entrou um rapaz de nome Diamantino, que era meu companheiro na Academia de Boxe que eu havia frequentado para perder alguns quilos. Ele, vendo a coisa mal parada disse para que todos ouvissem: “Vocês são amigos do Laércio? Conservem essa amizade. Por que se ele ficar bravo nós todos podemos apanhar. Esse moço é simplesmente peso meio pesado e só não está lutando boxe porque ele não quis perder o emprego na Cia Mogiana. Por que não poderia conciliar as duas coisas. Portanto, tratem bem dele, que é um moço pacato, sincero e muito cordial. Eu o conheço lá da academia de boxe, e eu sei do que estou falando. Devo acrescentar que o nosso instrutor queria leva-lo para São Paulo, para aprimorar suas qualidades. Ele só não concordou porque tem amor à profissão e quer ser maquinista, um dia. Ele só estava na academia para diminuir o seu peso que estava 9 quilos acima do permitido para ser ajudante de foguista”.
Ai, eu e o Diamantino fomos beber os nossos copos de leite com groselha. Agradeci ele ter chegado na hora certa e com diplomacia ter colocado as coisas no lugar.
Então, após o repouso voltamos para Campinas com o trem N2 e o Senhor Foguista valentão, me tratando com o maior respeito. Agora eu não era mais chamado de “campineiro”, mas sim de Senhor Rossi. Não citei o nome dele aqui pois ele devia ter uns 20 anos a mais do que eu e se estiver ainda vivo deve ter uns 100 anos e se não estiver, que Deus o tenha no seu reino.
Completei minha carreira de Ajudante de Foguista, depois a de Foguista e cheguei a carreira de maquinista, sempre respeitando a todos, e sai aposentado com um largo circulo de amizades. Sempre com humildade, e como que por milagre, ninguém ficou sabendo de minha passagem por acaso pelo boxe.
Se eu pudesse voltar aos meus primeiros anos de vida e as ferrovias fossem ainda as mesmas, eu voltaria a ser aquele limpador dede locomotivas, de 1955, sonhando em ser maquinista.
Certo dia um engenheiro da ferrovia me perguntou:
“O que levava uma pessoa a escolher essa carreira? Eu lhe respondi: “Todos aqueles que conhecem seus limites, como eu, e que jamais poderiam ser engenheiros, professores ou médicos, abraçam essa carreira. E o senhor pode acreditar que todos irão morrer um dia, mas felizes por terem alcançado sua meta”.