Dois conselhos que eu não segui
 
Conselho se fosse bom, ninguém dava de graça; diz o velho ditado. Não sei se isto realmente é verdade. O fato é que as pessoas, de um modo geral, gostam de dar conselhos, mas não apreciam muito recebê-los. Soam como intromissão na vida alheia, no particular de cada um.
 
Certamente recebi muitos conselhos na vida. Talvez tenha seguido alguns e rejeitado outro tanto, quem sabe a maioria. Todavia, de dois eu nunca me esqueci, embora os tenha dispensado por motivos diferentes e sem ter muita certeza de que escolhia o melhor caminho. Ambos permanecem ainda hoje nas minhas lembranças, pelo modo veemente, sincero e seguro com que foram ofertados, e também porque partiram de pessoas a quem, apesar do curto tempo de convivência ou contato, devotei grande respeito. Penso que a apreciável diferença de idades entre mim e elas tenha contribuído de forma contundente para esses episódios.
 
Eu trabalhava na carpintaria do meu pai, quando, numa tarde, atendi um senhor que solicitou orçamento de portas e janelas para a casa que estava construindo. Um homem de semblante tranquilo, baixinho, mais para franzino, fala mansa, aparentando uns 50 anos de idade.
 
Entreguei-lhe o orçamento, ele disse que ia pensar, mas não foi embora imediatamente. Engrenamos um papo sobre amenidades, bastante agradável. Contou-me que era judeu polonês. Entendi, então, a origem do sutil, mas ainda presente, sotaque característico dos imigrantes eslavos.
 
Berel Brik veio para o Brasil em 1934 em busca de vida melhor. Sua cidade natal, Luck, a partir de setembro de 1939, passou a fazer parte da Ucrânia, com o nome de Lutsk, por força do acordo celebrado entre a Alemanha de Hitler e a antiga União Soviética de Stalin, após a invasão da Polônia pelos dois países. Os cerca de 25 mil judeus que viviam na cidade foram dizimados na Segunda Guerra Mundial. Portanto, se ele tivesse permanecido na sua terra, poderia ter sido um deles.
 
Na semana seguinte ele voltou para fazer a encomenda. Conversamos durante um bom tempo. Acho que tanto eu quanto ele estávamos um pouco surpresos. Um guri de 18 anos, recém-ingresso na universidade, conversando tão maduramente com um homem maduro e experiente.
 
Falou-me sobre o livro de contos que ele havia publicado dois anos antes, versando sobre a perseguição que os judeus sofreram na Europa. Como não dominava completamente a língua portuguesa escrita, escreveu os contos em ídiche e depois traduziu para o nosso idioma, recorrendo constantemente a dicionários russo-português e alemão-português, tentando sempre encontrar as palavras que melhor transmitissem as ideias expostas nas histórias. Um trabalhão, segundo ele.
 
A terceira vez que ele apareceu foi para pagar o saldo do pedido e combinar a entrega. Trouxe-me um exemplar autografado do seu livro Judeus em Várias Terras e em Situações Diferentes. Uma edição bem simples, de pouco mais de 400 páginas, num português um tanto sofrível, mas com as ideias bem concatenadas e histórias com ótima evolução. Leitura fácil e emocionante.
 
Logo na orelha da capa depara-se com a transcrição de um trecho interessante da introdução, esclarecendo o objetivo da obra: “Faço uma exibição de judeus. Judeus bons e judeus maus. Judeus ricos e judeus pobres, honestos e trapaceiros, covardes e valentes, crentes e descrentes. Não procuro privilégio, nenhum respeito especial. Não destaco virtudes, não oculto defeitos. Somos os mesmos, iguais aos demais homens de outros povos e raças”. Mais abaixo, prossegue: “...o antissemita se utiliza tanto dos nossos defeitos, como das virtudes”.
 
Na orelha da contracapa, ele termina assim: “Ofereço meu trabalho, como gota no mar de letras brasileiras. Me integro como molécula na imensa terra acolhedora – Brasil”.
 
Curioso é que até esses encontros eu não tinha publicado nada do que havia escrito, nem comentara com ele que vez ou outra cometia alguns textos, para depois rasgar e jogar no lixo. Somente mais tarde criei coragem de entregar alguns contos e crônicas para publicação no jornal do diretório acadêmico da faculdade, e alguma coisa a uma prima, para sair numa revista da qual nem me lembro mais o nome.
 
Na nossa despedida - lembro-me como se fosse hoje - ele me aconselhou, sabendo que eu não tinha intenção de continuar com a carpintaria, e pretendia seguir outra carreira numa grande empresa ou órgão público:
 
- Olhe, você devia conservar este negócio para sua manutenção, mas ao mesmo tempo se dedicar a uma arte qualquer. Podia ser escritor, por exemplo.
 
Em seguida saiu e eu fiquei um bom tempo matutando, tentando entender porque ele teria me dito aquilo, se, apesar das nossas longas conversas, pouco de mim ele conhecia.
 
Enfim, não segui o conselho do Berel Brik, a quem nunca mais vi. Mais tarde, encerrei a firma do meu pai e fui me desenvolver em outra carreira, fora do ramo empresarial. Também não me tornei escritor profissional, e ele, por sua vez, virou nome de logradouro no Hugo Lange, um bairro de Curitiba. Entretanto, quarenta e sete anos depois, o seu livro ainda guardo com muito carinho na minha estante.
 
No último ano da faculdade de Ciências Econômicas, tive como professor de sociologia um advogado, meu conhecido do bairro onde morava. Também baixinho, boa praça, sempre bem humorado, culto. Um devorador de livros.
 
Além disso, generoso. Quando a aula dele era a última, oferecia-me carona no seu impecável Chevrolet azul-marinho do início da década de 1950. No caminho, muitas vezes, falava com orgulho da sua participação como tenente na Força Expedicionária Brasileira – FEB, e da campanha heroica do Brasil na Segunda Guerra Mundial.
 
Ao me cumprimentar após a solenidade de formatura, acredito que impressionado com a retórica que naturalmente empreguei ao proferir o meu discurso de orador da turma, e apaixonado pelo exercício da advocacia como ele era, lascou-me o seguinte conselho:
 
- Agora você já pode começar o curso de Direito.
 
E com o indicador em riste, meio voltado para o alto, acrescentou:
 
- Não se esqueça, o tempo passa do mesmo jeito.
 
Falei vou pensar, professor.
 
Confesso que a forma como o aconselhamento foi aplicado fez-me balançar. No entanto, eu não queria perder os quatro anos investidos, com muito sacrifício, no curso que acabara de completar. Aos 21 anos, tinha pressa e não estava propenso a mudar de carreira, pois sabia que, se decidisse encarar mais uma faculdade, no final teria que optar por uma ou outra profissão. Então, esse conselho eu também não segui.
 
Durante muitos anos, em várias oportunidades, encontrei-me casualmente com o Professor Mário Montanha Teixeira, no bairro. Temia que ele me cobrasse a aceitação do conselho. Felizmente, nunca cobrou e jamais falamos sobre isso. Eu não queria, de modo algum, desapontá-lo ou constrangê-lo, sabendo da seriedade e paixão com que ele se dedicava ao seu ofício nos tribunais.


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N. do A. - Na ilustração, capa do livro Judeus em Várias Terras e em Situações Diferentes de Berel Brik, e autógrafo do escritor gentilmente concedido ao autor.