QUERO GANHAR DE PRESENTE O DOM DE TOCAR
O Brasil recém sagrara-se tricampeão e todos nós do infantil do Internacional o desejo era estar na próxima copa e para isto treinávamos com afinco, mesmo com as advertências do Seu Jofre Funchal das grandes dificuldades que esta caminhada reservava.
No final do penúltimo mês do ano eu completaria 15 anos e então papai perguntou-me o que desejaria receber de presente e já saiu limitando dentro de nossas posses, respondi logo que queria uma chuteira marca Gaeta, pois o valor estava no limite.
Vistos de longe, nós de poucas posses parecíamos viver uma rotina de dia após dia sem nada diferente, mas de perto a singeleza era quebrada pela lembrança afetiva e não material e assim no final daquela quarta-feira do dia 25 de novembro de 1970 um bolo caseiro marcou os meus quinze anos, eu tentando transparecer tranqüilidade aguardava ansioso a chegada de papai. Lá pelas 20 horas avistei-o carregando um embrulho retangular e grande, que desfez de pronto meu sonho de uma chuteira de marca.
Ele abriu a porta e naquele jeitão simples alcançou-me a caixa e disse para que eu pegasse meu presente, comecei a abrir a caixa numa última esperança que fosse um embrulho para enganar-me, mas não, não era um par de chuteira e sim um violão. Não podia desapontá-lo e cedilhei as cordas, que responderam com um som chocho mais parecendo uivos em diversos tons, que me fizeram encolher os ombros e arregalar os olhos, fazendo mamãe perceber que eu estava desconcertado, então ela tranqüilizou-me dizendo que o violão tinha que ser afinado, mesmo assim fiquei feliz e coloquei o violão ao lado da cama.
Já no sábado seguinte ele foi afinado pelo Rudimar um amigo de jogo de xadrez e do futebol, por sábados e mais sábados ele tentou ensinar-me, mas não sai dos primeiros acordes. Os anos foram passando a vida assumindo outros rumos, nem a música, nem o futebol. Dois anos depois empunhava um fuzil e logo em seguida uma espada. Companheiro de quase 45 anos e que por diversas vezes tentei fazer as pazes, sem no entanto conseguir, companheiro que hoje dorme ao lado de minha espada num canto do pequeno depósito de guardados, já sem as cordas e com o cavalete descolado.
Nunca tive coragem de dizer ao papai do meu desapontamento, mas certamente hoje ele sabe, um desapontamento pequeno perto da frustração por não ter herdado o dom de mamãe, que conseguia tirar som de violino de um pequeno pedaço de papel celofane, enquanto cantava tangos para nós, a pequena platéia composta pelos três filhos e vovó. Tio Dirceu era outro sem igual, ouvia uma música e já saia tocando no cavaquinho, como dizem por ai ele toca de ouvido.
Espero que haja reencarnação e que Deus aceite pedidos desta para outras vidas, então quero daqui pelo menos uns 35 anos ganhar novamente o mesmo violão e que ele venha acompanhado do dom de tocar!