Como Conheci Mario Quintana
1975. Centro de Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, Rua dos Andradas (popularmente Rua da Praia), entre a rua Caldas Junior e a General João Manoel, erguia-se a “Pensão Seleta”, num casarão antigo, de três pisos, prédio ainda hoje em pé, creio que tombado como patrimônio cultural (estranho: o prédio está “em pé” por ter sido “tombado”), pois faz parte do atual Centro Histórico local. De bela fachada, ornada bem no centro, na altura do 3º andar, com a estátua de uma bela mulher além de outros adereços, ainda hoje intactos e preservados. Eu, então jovem solteiro de 23 anos, recém chegado do interior do estado para trabalhar na capital, após aprovação num concurso público, fiz daquele prédio o meu lar, durante cerca de três anos, mediante (claro) pagamento de modesta mensalidade. Meu quarto individual, no 3º andar, apesar de muito modesto e exíguo, compensava muito pelo fato de ter, em sua única janela, de frente, aprazível vista para a efervescência da “ Rua da Praia”, além de localizada (a janela) exatamente ao lado da bela estátua de mulher, que do lado de fora ornava a fachada. De modo que minha trajetória como habitante da Pensão Seleta e da capital Porto Alegre, iniciei, desde a primeira noite e nas sucessivas, muito bem acompanhado daquele belo espécime feminino, sempre à disposição dos meus olhos, logo ali, do lado de fora e ao lado de minha janela. Mulher um tanto fria, porém tão misteriosa e bela em suas ininterruptas e imponentes mudez e imobilidade. Um pouco adiante da Pensão Seleta, seguindo a rua em direção ao Gasômetro, ficava o Hotel Magestic (hoje “Casa de Cultura Mario Quintana”), então morada de Mario Quintana, além de outros hóspedes. De modo que éramos vizinhos de Rua, eu e o poeta, ficando apenas a 200 ou 300 metros de distância nossas moradas, uma da outra.
A Pensão Seleta fornecia, a nós moradores, inclusos na mensalidade, além da moradia, o café da manhã, almoço e janta, todos os dias com exceção de sábados à noite, domingos e feriados. De modo que pelo menos nesses últimos dias citados, matava-se a fome geralmente em uma das inúmeras lanchonetes ou pequenos restaurantes que circundavam a área. Num desses estabelecimentos iniciei, ao acaso, meu relacionamento com Mário Quintana. Eu estava em um balcão de lanchonete devorando algo, quando ocupou a vaga a meu lado aquela figura de modos simples e humildes, já com seus quase 70 anos e portador de um sorriso manso e sereno. Cumprimentou-me e aos atendentes, anônimo apesar de já muito famoso, e, após pedir seu lanche como qualquer outro simples mortal, se pôs a conversar alegremente comigo e com outros. Comentários e banalidades quaisquer. Os atendentes, assim como os frequentadores, percebi e confirmei nos dias e semanas subsequentes, não tinham a menor ideia de quem ou o quê fosse aquele homenzinho que frequentemente ali matava a fome. Antes que me esqueça de dizer, tratava-se de um estabelecimento muito simples, quase uma espelunca, frequentado por populares diversos: entre outros, operários da construção civil, estafetas, trabalhadores do porto próximo e, inclusive, algumas prostitutas atuantes no então chamado “baixo meretrício”, tão típico de áreas portuárias (o porto do rio Guaíba ficava próximo), que também lá acorriam para saciar a própria fome, após trabalho duro saciando outra modalidade de fome de seus clientes.
Nessa época corria o mito (ou verdade) de que Mario Quintana não gostava muito de ser reconhecido e abordado nas ruas e lugares e que, até por isso, procurava ambientes simples, de pessoas simples, em determinadas situações, onde não fosse reconhecido. Sabedor desse fato – visto que, desde esse primeiro contato direto, eu soubesse de quem se tratava, já tinha lido os seus “A Rua dos Cata Ventos” e “Espelho Mágico”, pelo menos, além de acompanhar como leitor sua trajetória de jornalista/poeta/cronista atuante na empresa Caldas Junior através do jornal Correio do Povo - não revelei a ele o fato de que eu sabia quem ele fosse, em respeito a sua notória (ou suposta) necessidade de discrição. Tampouco ele falou quem fosse ou o quê fazia. Durante um bom tempo, primeiro sempre ao acaso, nos encontrávamos e batíamos papo nessa mesma espelunca, ou em outra e, aos poucos, fomos aprofundando o entrosamento. Na sequência, quando nos deparávamos um com o outro na rua, parávamos para levar um papo rápido, sobre trivialidades do dia-a-dia. Mais tarde passamos, algumas vezes, a combinar encontros para refeição ou lanche juntos. Não demorou muito e passamos a falar sobre política, sobre a ditadura militar então vigente, sobre futebol, Grêmio, Internacional, e, inevitável, chegamos na literatura, livros, escritores, romancistas... Nesse tópico recebi aulas gratuitas, sempre fingindo não saber (ou não revelando saber) que o meu professor era o grande Mario Quintana. Chegou o dia em que ele não resistiu e perguntou, de chofre, meio que afirmando: “Tu me conheces...?!?” “...Sabes quem eu sou, não sabe?!?” “Claaarooo! Tu és o grande poeta Mario Quintana...”, respondi.” “...Achou que eu não soubesse?” Olhou-me surpreso, firmemente, e nos instantes seguintes caiu na gargalhada, no que acabei lhe acompanhando. Após estancados os acessos de riso, não foi preciso nenhuma explicação de parte a parte. Nossos acessos de riso já haviam esclarecido claramente o que fosse necessário. Na sequência desse fato, prosseguimos normalmente e do mesmo modo nosso relacionamento por mais um certo tempo; não demorou e mudei-me para Curitiba; o Hotel Magestic (não lembro se foi vendido ou desativado como hotel) deixou de ser morada do Mario Quintana, que nesse tempo estava em uma maré financeira muito precária, de tal modo que acabou sendo acolhido e custeada sua hospedagem em outro estabelecimento hoteleiro, pelo jogador Paulo Roberto Falcão (parece que o hotel era propriedade dele, do Falcão, não tenho certeza), por um longo tempo. Enfim, desde minha vinda para Curitiba, nunca mais o vi pessoalmente, tampouco tive qualquer contato com ele de nenhum outro modo que não fosse através de leituras e releituras de sua obra. Uma visão sobre o Mário Quintana, entre as que sobressaem em mim, é a de que ele tenha sido um filósofo que, para fugir da sisudez inevitável da filosofia, transmutou-se em poesia. Um poeta bem-humorado, o que transparece em boa parte de suas criações. Deu-me o poeta, pelo exemplo no modo de ser, talvez uma das maiores de todas as lições que já tive: a da simplicidade. Um homem de tal fama, envergadura intelectual, artística e filosófica, transitou pela vida transpirando simplicidade. Sem afetações; esse mal tão comum e exacerbado sobretudo entre artistas menores e, comumente em artistas iniciantes jovens e/ou de pouca experiência de vida. Nesse último caso, sob a ótica da filosofia de Quintana, perdoável: “A presunção, tão divertida e perdoável nos mais moços, é o mais claro sinal de burrice nos mais velhos. O verdadeiro fruto da árvore do conhecimento, é a simplicidade”. No máximo, na reta final de sua vida, Quintana explicitou e deixou fluir, como uma criança, alguma vaidade diante de festejos aos quais se viu exposto, através de homenagens diversas, menções e afagos que lhes foram feitos. Afora suas tentativas, frustradas, de entrar para a Academia Brasileira de Letras.
Não posso dizer que tenhamos sido amigos, eu e Mario Quintana. Apenas muito bons conhecidos, habitantes da mesma rua e frequentadores das mesmas espeluncas. O que para mim já foi o bastante. Um grande privilégio.
Nelson S Oliveira