Tesourinhos

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Prima Tina conta, aproximadamente com essas palavras, que quando criança no mesmo dia se desligou de duas pessoas que amava. Seu pai e seu irmão. Esse fato deu-se em fins da década de 50, mas não remete a uma tragédia. Com a separação dos pais, o irmão optara por morar com o progenitor. Trinta anos se passaram, Tina casada e de viagem marcada para o exterior, confessa ao marido sua hesitação em embarcar, pois sente haver algo de errado com o irmão. Assim que desembarca noutro continente vem a notícia do falecimento. Segue-se um lamento e uma constatação curiosa: esse irmão, separado da mãe desde criança e enfermo nos últimos tempos, foi passar uma temporada na casa dela. Ali deu o último suspiro. Tina ponderou que a vida desenhou o círculo e mãe e filho, no fim de contas, estavam juntos no momento da passagem. Essa reflexão a confortou. Uma semana depois, ou menos do que isso, ele aparece em sonho dizendo que tudo está bem e as únicas coisas que deve-se ter em mente durante a jornada são amor e perdão. Prima Tina ficou tocada com isso, e, nas palavras dela, comparou o sonho com um relâmpago, no sentido de algo eletrizante. Sonhou, pulou da cama, seu pai estava no hospital, partiu pra lá em dois segundos e chegou a tempo de lhe apertar a mão. Depois não houve tempo para mais nada, exceto o longo pensar acerca da relatividade desse vazio e da peculiaridade da circunferência: pai e filho, que passaram a existência sob o mesmo teto, foram embora em parceria.

Michel Legrand, músico, compositor&demais qualidades, esteve no Rio de Janeiro para participar de uma mostra de cinema francês, em 1964. Logo no primeiro dia conheceu uma moça, também francesa, e durante 96 horas ensejaram um romance inesquecível. Findo o prazo se despediram com tremendo pesar. Mas se despediram. Michel era casado, tinha um filho pequeno e ela estava noiva, de casamento marcado. Ele narra que muitas pessoas iriam sofrer por conta de um aparente deslize e que isso não valia a pena. Já não mais casado, 50 anos depois, no início de 2014 ele reencontra a moça. Nunca esquecera dela, mas nunca mais a vira. Estão grudados agora, e vão casar em setembro. Na sua narrativa sobre esse reencontro, ele diz que no momento em que a viu, a chama em seu coração marcou presença.

Edu Lobo, em entrevista recente, nos ensina que a extensão responsável pela criação de uma melodia não é a voz, e sim os dedos, pois a voz não consegue realizar certos intervalos como, por exemplo, um instrumento de teclas. Edu foi um dos protagonistas do nascimento de uma era musical de acentuada sofisticação.

Assim como a música, a vida parte de um ponto.

Encerramos com este singular pensamento, estampado nos muros de uma igreja, num dos afluentes que levam a Santiago de Compostela:

"Três coisas tem um homem discreto: letras, idade e caminho".


(Imagem: Eugène Delacroix, a cama não feita, 1827)
 
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 06/08/2014
Reeditado em 03/04/2021
Código do texto: T4912021
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