Racismo ainda mata
"No Brasil, [...] o abolicionismo é antes de tudo um movi¬mento político, para o qual, sem dúvida, poderosamente concorre o interesse pelos escravos e a compaixão pela sua sorte, mas que nasce de um pensamento diverso: o de reconstruir o Brasil sobre o trabalho livre e a união das raças na liberdade." (Joaquim Nabuco, O Abolicionismo, p. 68 —1883).
O Brasil, em teoria, aboliu a escravidão, mas não conseguiu ainda erradicar o preconceito e o racismo.
Fazendo um parêntese, até mesmo o processo de abolição da escravidão teve o seu jeitinho brasileiro de acabar. Você se lembra como se deu este processo? Deixe-me te lembrar dos tópicos mais importantes deste processo, e neles vamos raciocinando de forma menos lúdica que as trazidas nos livros escolares.
Lei do ventre-livre. Consistia em libertar os filhos de escravos nascidos a partir de então. Parece uma medida bonita, humana, não é? Mas, o que aconteceria com os recém-nascidos? Seriam simplesmente postos na estrada com um tapinha na bunda aos dizeres: vai-te embora, és um bebê livre. Ora, tinham de mamar, não se sustentavam nas próprias pernas e ninguém, absolutamente ninguém se apresentaria para cuidar do recém-libertado. Tudo bem que eram livres, mas eram negros e pobres. Quem queria? Ademais, escravo, ou filho deste, até onde sei não tinha certidão de nascimento, então, como provar que havia nascido antes ou depois da lei? Não provava, e escravo continuava. Conclusão: medida inócua, tudo continuava como antes.
Lei do sexagenário. Aqueles que completassem sessenta anos de idade, que cumprissem uma espécie de aviso prévio de três anos (no "frigir dos ovos", deveriam ter 63 anos) ganhavam a liberdade. Que bonito! Primeiro os filhos dos escravos, agora os idosos. Balela! Que escravo conseguia chegar aos 63 anos com condições de usufruir da liberdade? Que escravo conseguia chegar aos 63 anos? Sem registro de nascimento, como provar tal direito? E outra coisa, considerando que hipoteticamente algum escravo chegasse a tal idade, cumprisse o aviso prévio e ganhasse a liberdade. Iria sair da fazenda por quê? Como iria viver? Quem lhe daria emprego? Haveria ele forças para trabalhar, ou dinheiro para comprar uma casa, comida, etc? Não tinha FGTS ou qualquer outro benefício trabalhista naquela época. Conclusão: medida inócua, tudo continuava como antes.
Lei Áurea (Princesa Isabel). Esta medida dispensa maiores comentários, se pensarmos que ainda hoje, devido a imensidão do Brasil, vira e mexe é encontrada uma propriedade que se utiliza de mão-de-obra escrava, ou como dizem, "análoga à condição escrava". Imagine então naquela época (1888). Se hoje ainda a fiscalização é deficiente, como era a fiscalização na vigência da Lei Áurea? Existia fiscalização? Conclusão: medida inócua,
tudo continuava - e por muito tempo continuou - como antes.
Dia desses, em uma reportagem da Folha de São Paulo (Justiça condena PMs a 17 anos de prisão pela morte de dentista em SP) felizmente vimos a conclusão de um acontecimento trágico, onde a justiça exerceu sua função, excepcionalmente de forma rápida e eficaz, ao condenar os Policiais Militares envolvidos na execução sumária de um cidadão de bem, o dentista recém-formado, Flávio Ferreira Sant'Ana, 28 anos, em fevereiro de 2004, onde talvez o único erro cometido por ele foi o de ter a coloração da pele em tons escuros, num país que pugna pela democracia e igualdade de direitos, sem distinção de credo, cor, raça, sexo, etc., mas que disfarçadamente exerce o racismo e o preconceito.
Flávio era negro, humilde, filho de um policial aposentado, mas era cidadão e brasileiro, um filho da pátria e decidiu pensar e existir, tinha um sonho e foi atrás dele, tornar-se um dentista. Conseguiu, formou-se, mas, infelizmente por um ato equivocado de policiais despreparados e racistas - racistas sim, embora neguem que o crime tenha sido por motivo racial - teve seu sonho tolhido, justamente quando estava prestes a se tornar realidade, pois foi morto apenas cinco dias após sua formatura, e não chegou a exercer sua profissão.
Neste caso podemos sentir orgulho de nossa justiça, que foi rápida e eficaz, quando cotidianamente o que presenciamos, principalmente eu que sou advogado militante, é uma justiça morosa, com falta de estrutura, tanto pessoal quanto material, onde os processos se arrastam entre os cartórios e gabinetes de juízes, entre recursos e burocracias, em questões que deveriam ser resolvidas de forma mais célere. Talvez, o caso do Flávio tenha sido uma das exceções à regra, talvez pela comoção pública, pela notoriedade pública através da imprensa, ou talvez pela in- fluência de seu pai, policial aposentado. Não sei. Mas quantos Flávios, Pedros, Josés, Paulos, Márcios, etc... que em comum compartilham a cor da pele, são executados diariamente, vítimas de racismo, ocultados como se tentou fazer com o dentista Flávio? Quando os policiais retiraram seus documentos pessoais e o deixaram como indigente no pronto socorro, o que queriam? Quantos não são exatamente banidos da sociedade por erros de policiais que assumem o papel de juízes, julgando e condenando pessoas, muitas vezes inocentes, a uma sentença não prevista em nossa legislação, mas presente em nosso cotidiano, a sentença de morte?
Pois bem, ao Flávio, parabéns por ter pensado e existido, que descanse em paz ao lado de Deus, pois a justiça foi feita, e tem que servir de exemplo para que fatos como esse jamais se re¬pitam, pois somos uma nação, fazemos parte de um Estado Democrático de Direito, onde fatos dessa natureza são inaceitáveis. Ser negro em nossa sociedade é fácil? A Lei Áurea tentou abolir a escravatura, não conseguiu. Conseguiremos um dia abolir o preconceito e o racismo?
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