Nas asas dos morcegos
Há dessas reminiscências que não
descançam antes que a pena ou a
língua as publique.
Machado de Assis .
1. Nas asas dos morcegos viaja um pouco da minha infância. Sempre que os vejo, recordo-me das memoráveis batalhas que travei contra eles, eu menino, no porão de um sobrado antigo, que ficava ao lado da minha casa, no sertão do Ceará.
2. No sobrado morava o provecto e piedoso padre Zé Ferreira, o amado vigário de minha, naquela época, acomodada paróquia.
3. As batalhas aconteciam à boquinha da noite. Meus amigos e eu ganhávamos, do dono do sobrado, que não era o padre, um tostão por cada dez morcegos abatidos.
4. Essa grana, nos idos de 1940, dava folgado para comprar o doce-gelado (picolé) e o algodão-doce no boteco de seu Tonico, um presbiteriano que morava no beco de dona Mariquinha. Com sua voz mansa de pastor escolado, garantia que não explorava ninguém... Mas explorava.
5. Os morcegos invadiam o porão pouco antes da hora do Angelus. Vinham da torre da igreja matriz, um singelo templo consagrado a Senhora Santana, erguido na praça principal; a poucos metros do sobradão do vigário.
6. Era um belíssimo espetáculo vê-los chegando no porão. Dava a impressão de que um segurava na mão do outro, formando um extenso e solidário cordão esvoaçante.
7. Cassetetes na mão, e fazendo uma tremenda algazarra, a turma iniciava a "guerra". A maioria dos morcegos era abatida em pleno voo, o que dava ao combate maior emoção.
8. A "batalha" só terminava quando o porão ficava completamente às escuras. A trégua se impunha porque os morcegos levariam vantagem: no escuro, eles enxergavam mais e melhor.
9. Havia, porém, outro motivo: à noite, segundo o pessoal antigo da cidade, o porão, embora fosse da residência oficial do cura, era um local mal-assombrado. O povo jurava que almas do outro mundo, batendo palmas e gemendo, botavam pra correr quem se atrevesse a invadi-lo, após o sol se pôr.
10. Depois do jantar, no banco da pracinha, a "guerra" contra os morcegos dominava o papo dos garotos guerrilheiros. A conversa estendia-se até a luz da cidade ser desligada, o que ocorria, sem apelação, às onze da noite. Com a praça da matriz sem luz, só tínhamos uma opção: a redinha.
11. No dia seguinte, muitos alardeavam que haviam sonhado com a guerra dos morcegos. Eu cheguei a ter um desses sonhos; quase um pesadelo. Acordei o pessoal de casa, gritando: mata o morcego! mata o morcego!
12. Até esta data, nunca me preocupara em escrever sobre isso. Uma crônica sobre morcegos? Valeria a pena? Ou seria melhor continuar guardando esta história nos socavões da minha memória, onde mantenho arquivadas algumas das melhores relembranças da minha feliz infância?
13. Convenci-me de que podia contá-la. Principalmente agora, que, setentão, encontro-me descendo a ladeira...
Pouco importa se morcego lembra cavernas, arquivo morto, prédio em ruína, casa abandonada, velhos campanários.
Ninguém está obrigado a ler o que ando escrevendo. Quem não gostar desta crônica, favor esquecê-la.
14. Mas, para dizer a verdade, foram os morcegos de uma pequena cidade do interior da Bahia, cujo nome não revelarei, que me levaram a tirar esta história do baú da saudade.
Vampíros hematófogos, os únicos que sugam sangue, estariam, segundo os jornais, atacando seus moradores, assustando o lugar.
15. Se o prefeito da cidade molestada me pedisse um conselho, eu lhe diria o seguinte: convoque os garotos do seu município, lhes entregue um porrete, e os faça afugentar, para bem longe, os morcegos que ameaçam sua cidade.
16. Não precisa matá-los; como, na minha infância, eu fazia. Naquele tempo, eu ainda não sabia que o desaparecimento defintivo dos morcegos podia "resultar em um desequilíbrio ambiental" . Eu era um ingênuo sertanejo nordestino.
Há dessas reminiscências que não
descançam antes que a pena ou a
língua as publique.
Machado de Assis .
1. Nas asas dos morcegos viaja um pouco da minha infância. Sempre que os vejo, recordo-me das memoráveis batalhas que travei contra eles, eu menino, no porão de um sobrado antigo, que ficava ao lado da minha casa, no sertão do Ceará.
2. No sobrado morava o provecto e piedoso padre Zé Ferreira, o amado vigário de minha, naquela época, acomodada paróquia.
3. As batalhas aconteciam à boquinha da noite. Meus amigos e eu ganhávamos, do dono do sobrado, que não era o padre, um tostão por cada dez morcegos abatidos.
4. Essa grana, nos idos de 1940, dava folgado para comprar o doce-gelado (picolé) e o algodão-doce no boteco de seu Tonico, um presbiteriano que morava no beco de dona Mariquinha. Com sua voz mansa de pastor escolado, garantia que não explorava ninguém... Mas explorava.
5. Os morcegos invadiam o porão pouco antes da hora do Angelus. Vinham da torre da igreja matriz, um singelo templo consagrado a Senhora Santana, erguido na praça principal; a poucos metros do sobradão do vigário.
6. Era um belíssimo espetáculo vê-los chegando no porão. Dava a impressão de que um segurava na mão do outro, formando um extenso e solidário cordão esvoaçante.
7. Cassetetes na mão, e fazendo uma tremenda algazarra, a turma iniciava a "guerra". A maioria dos morcegos era abatida em pleno voo, o que dava ao combate maior emoção.
8. A "batalha" só terminava quando o porão ficava completamente às escuras. A trégua se impunha porque os morcegos levariam vantagem: no escuro, eles enxergavam mais e melhor.
9. Havia, porém, outro motivo: à noite, segundo o pessoal antigo da cidade, o porão, embora fosse da residência oficial do cura, era um local mal-assombrado. O povo jurava que almas do outro mundo, batendo palmas e gemendo, botavam pra correr quem se atrevesse a invadi-lo, após o sol se pôr.
10. Depois do jantar, no banco da pracinha, a "guerra" contra os morcegos dominava o papo dos garotos guerrilheiros. A conversa estendia-se até a luz da cidade ser desligada, o que ocorria, sem apelação, às onze da noite. Com a praça da matriz sem luz, só tínhamos uma opção: a redinha.
11. No dia seguinte, muitos alardeavam que haviam sonhado com a guerra dos morcegos. Eu cheguei a ter um desses sonhos; quase um pesadelo. Acordei o pessoal de casa, gritando: mata o morcego! mata o morcego!
12. Até esta data, nunca me preocupara em escrever sobre isso. Uma crônica sobre morcegos? Valeria a pena? Ou seria melhor continuar guardando esta história nos socavões da minha memória, onde mantenho arquivadas algumas das melhores relembranças da minha feliz infância?
13. Convenci-me de que podia contá-la. Principalmente agora, que, setentão, encontro-me descendo a ladeira...
Pouco importa se morcego lembra cavernas, arquivo morto, prédio em ruína, casa abandonada, velhos campanários.
Ninguém está obrigado a ler o que ando escrevendo. Quem não gostar desta crônica, favor esquecê-la.
14. Mas, para dizer a verdade, foram os morcegos de uma pequena cidade do interior da Bahia, cujo nome não revelarei, que me levaram a tirar esta história do baú da saudade.
Vampíros hematófogos, os únicos que sugam sangue, estariam, segundo os jornais, atacando seus moradores, assustando o lugar.
15. Se o prefeito da cidade molestada me pedisse um conselho, eu lhe diria o seguinte: convoque os garotos do seu município, lhes entregue um porrete, e os faça afugentar, para bem longe, os morcegos que ameaçam sua cidade.
16. Não precisa matá-los; como, na minha infância, eu fazia. Naquele tempo, eu ainda não sabia que o desaparecimento defintivo dos morcegos podia "resultar em um desequilíbrio ambiental" . Eu era um ingênuo sertanejo nordestino.