Diário de Sonhos - #086: Irmandade Secreta das Bestas Aristocratas
Estou ano estou tendo muitos sonhos nos quais eu tenho liberdade de ação. Isto é, dentro do sonho eu consigo escolher o que fazer e falar. São sonhos muito raros. Na minha vida acho que tive um ou dois. Mas neste ano consigo lembrar de pelo menos três.
Sonhei que eu era um lobisomem, líder de uma alcateia. Outras duas bestas me acompanhavam numa missão de conseguir alimento para os outros. Era quase noite. Um céu cinzento e parado. Tudo era cinza e sonolento: as árvores, a relva, um rio que passava preguiçoso logo depois. A vegetação me lembrava algo de clima temperado. Estava perto de uma colina, por onde passava uma estrada de ladrilhos. Uma carroça tombada e duas pessoas mortas. Nos alimentávamos delas. Mas eu, na verdade, não sentia vontade de comer. Vi meus companheiros em frenesi selvagem e senti o estômago embolar. Comecei a revirar a carroça e encontrei algumas moedas, lingotes de ouro e pedras preciosas. Peguei tudo pra mim.
Voltei a atenção para os meus companheiros. Estavam conversando entre si, em inglês. Usavam cartola e monóculo e bebiam chá. O viajante que há pouco estava sendo devorado estava deitado ali perto. Ao invés de sangue, o sujeito se esvaía numa substância branca e macia. Perguntei:
- Is it blood, brother? (É sangue, irmão?)
- No, it is not, brother. (Não, não é, irmão.)
- What is it then, brother? (O que é então, irmão?)
- It is chantilly, brother. (É chantilly, irmão.)
- Thanks, brother. (Obrigado, irmão.)
Nota-se que os lobisomens eram muito educados, verdadeiros cavalheiros. Tinham um sotaque britânico e um ar de aristocrata. Sujeitos muito distintos.
Caminho até o mercado de uma vila medieval. As pessoas saem correndo. Eu digo pra não terem medo, faço gestos para acalmá-las, mas elas parecem não entender. Soldados empunhando lanças me ameaçam. Eu caminho calmamente até uma barraca de carne, pego vários pedaços e levanto para todos verem. Em seguida pego as riquezas que pilhei da carroça e coloco no lugar da carne que peguei. Nós, lobos, estamos cansados de sermos bestas selvagens. Somos civilizados, filantropos e aristocratas. Estamos cansados de violência.
Cinco de agosto de dois mil e quatorze.