“Só os mendigos salvam o planeta.”
Minha criação excessivamente pudica não me permite dar vazão a um de meus maiores caprichos: tornar-me um escritor totalmente bukowskiano e ter como séquito literário “as prostitutas, homossexuais, vagabundos e bêbados”. Por mais que eu ocasionalmente flerte com o underbelly da cidade, pois com muito orgulho gosto de colecionar outsiders interessantes, sempre sou chamado de volta ao mundo da luz quando o das trevas me enfada – e enquanto não surge um Demian em minha vida para que aprenda eu a conciliar os dois, assim o será.
Acredito que mesmo o biltre mais embrutecido possa me fornecer alguma história ou alguma inspiração se me dedicar a ouvi-lo, e poucas foram as vezes que me enganei – personagens muito coloridos já me preencheram os ouvidos com contos que, prometo, não haverão de morrer comigo – mas dentre todos os “indesejados”, meus favoritos são os mendigos. Diógenes é o mais fino exemplo de que “só os mendigos salvam o planeta”, e passei a admirá-los como ascetas de nossos tempos, fazendo o possível para aliviar-lhes as necessidades sempre que o consigo. Um destes modos é por intermédio da conversa – muito poucas são as pessoas que os tratam como pessoas.
Em minhas andanças há um em particular com quem gosto muito de me deparar, apesar de até hoje ainda não saber seu nome, ou de onde vem, ou por que virou mendigo – mas talvez se o aprendesse a imagem demasiado romântica que dele tenho se dissiparia, então que fique por isto mesmo. É um pobre-diabo desdentado e frequentemente bêbado que, quase sempre, carrega consigo miríades de sacolas que contêm sabe-se lá o quê; eu próprio não me recordo de quando o encontrei pela primeira vez, mas sei que me interpelou com gracejos tão oportunos que me fizeram retornar para casa com a barriga doendo de tanto rir. Curiosamente, nunca me pediu qualquer esmola, ao contrário dos outros…
Infelizmente, há algum tempo já não sei por onde ele anda, portanto não brincamos mais juntos, mas a última vez em que o encontrei foi há, talvez, dois meses – após uma sessão de piadas disse-lhe, sem qualquer exagero ou pretensão, que encontrar-me com ele era sempre o ponto mais alto do meu dia, arrancando-lhe um sincero sorriso desprovido de vários dentes. De fato, espero muito encontrar-me com ele novamente, pois ainda que um reles mendigo, não só não está incluído no rol de tantos que me caluniam e perseguem por ser o que sou, como também posso deixar de lado as pesquisas e os velhos tomos embolorados e, por um instante, fingir que pertenço à normalidade. Também gostaria de legar-lhe estas linhas, esmola do espírito, para que, talvez, lhe deem algum alento entre os oceanos de desumanidade pelos quais, com tantos outros, navega – benditos, porém, são os que sofrem, como me ensinaram há tanto tempo e o constatei na própria pele.
(São Carlos, 3 de janeiro de 2024)