Vem pra Rua
Lá ia “seu” Alfredo, descendo a rua mais uma vez, sempre na mesmo hora, com seu terno fora de moda e seu inseparável guarda-chuva preto, a velha maleta na mão, indo pegar o ônibus pra ir trabalhar. Virava a esquina, atravessava a avenida e esperava o ônibus, consultando o relógio de pulso de vez em quando. Esperava em pé, porque o ponto de ônibus havia sido depredado a alguns anos, e por mais que redigisse, desde então, educadas requisições datilografadas à Prefeitura, com cópias para a câmara de vereadores, e enviasse sistematicamente pelo correio como correspondência registrada, pedindo a restauração daquele ponto de ônibus invariavelmente lotado, jamais recebera sequer uma resposta. Mais de uma vez observara gestantes e mulheres com crianças de colo esperarem em pé, e isso o motivava a continuar tentando alertar a Prefeitura sobre a importância de pontos de ônibus preservados e com a manutenção em dia.
Outra coisa que afligia “seu” Alfredo era o atraso, cada vez maior, do lotação que o conduzia ao trabalho, chegando ao ponto de ter que adiantar-se um hora ao sair de casa para pegar o ônibus com horário anterior ao que estava acostumado, a fim de não se atrasar. E os veículos estavam em condições cada vez piores, com motores que faziam barulhos nada saudáveis, motoristas visivelmente cansados, poltronas rasgadas, e janelas e portas que nem sempre se fechavam, comprometendo a segurança dos passageiros. Passageiros, aliás, em número muito maior do que o permitido pelas leis. Havia ligado diversas vezes para o número da empresa de transporte público, e quando finalmente conseguiu conversar com um atendente, este lhe informou, friamente: “É o trânsito, senhor, que provoca o atraso e as más condições dos carros. Estamos estudando as rotas que precisarão de maior número de veículos para melhor atender à demanda da quantidade de passageiros. Mais alguma coisa?” E mal o “seu” Alfredo abriu a boca para responder, o atendente o interrompeu: “Agradecemos sua ligação, senhor, tenha um bom dia”, desligando de supetão.
“Seu” Alfredo concluiu que não adiantava escrever para a Prefeitura solicitando que atentasse para a qualidade do transporte urbano, se nem responderam sua última solicitação sobre o ponto de ônibus, feita e reiterada a anos. Adaptou-se como pôde ás condições que tinha, acrescentando em seu dia a dia uma dose a mais de paciência, afinal todos os passageiros espremidos dentro daquele ônibus eram trabalhadores, como ele, inclusive o motorista e o trocador.
Depois de trabalhar as oito horas contratadas em sua Carteira de Trabalho, “seu” Alfredo recebeu, naquele dia, o que ele chamava carinhosamente de “holerite” (que explicava o valor creditado em sua conta salário), e sentou-se na pastelaria da esquina, onde diariamente e invariavelmente se dava o único luxo do dia. Gostava de repetir o pedido ao atendente, como um mantra de boa sorte: “um pastel de queijo e um suco de goiaba.” Acomodou-se no balcão e abriu o envelope verde, ajeitando os óculos sobre o nariz para exercitar a mente, calculando todos os descontos que faziam seu salário bruto afastar-se tanto do líquido que dava vontade de pedir à empresa que lhe pagasse os descontos e ficasse com o salário. Enquanto o pastel frito na hora era servido junto com o suco que vinha da máquina, e “seu” Alfredo tentava decifrar o mistério matemático do desconto do vale-transporte, um coro de vozes passou gritando pela avenida: “Vem pra rua!!! Vem pra rua!!!”.
- Mais um protesto – comentou o senhor cheirando a cigarro sentado ao lado.
“Seu” Alfredo suspirou resignado. Para ele, significava chegar em casa mais tarde, orando para que os manifestantes não escolhessem o seu ônibus para incendiar. E não queria ocupar sua cabeça com isso agora: precisava fazer as contas para conseguir que aquele salário fosse o suficiente para pagar a farmácia, a pensão onde morava, e ainda passar o mês sem precisar renovar o empréstimo bancário. Comeu sem pressa, bebeu o suco de goiaba que degustava a anos naquela mesma pastelaria, e dirigiu-se ao caixa para pagar. Distraído com o protesto, o atendente não fez a “notinha”. “Seu” Alfredo tentou informar, ele mesmo, o que havia pedido, mas o caixa (que “seu” Alfredo observou com desagrado que era novato, e pensou: onde estará Tereza?), ignorando-o, gritou sem nenhuma compostura:
- Ei, Danilo, qual foi o pedido do tio aqui?
- Um pastel de queijo e um suco de acerola!
- De goiaba, corrigiu “seu” Alfredo, solícito. O caixa olhou-o com desdém, e voltou a gritar para o atendente:
- Danilo, é acerola ou goiaba?
- É acerola, como sempre!
O caixa virou-se para “seu” Alfredo, suspirando com displicência:
- A diferença do preço são só vinte centavos...
“Seu” Alfredo era um homem de princípios. Sempre gentil e comedido, prezava a educação e os bons costumes. Mas naquele momento sentiu o sangue lhe fervilhar nas têmporas. Murmurou pra si mesmo: “Acerola? Como sempre? Por quanto tempo estarei sendo ludibriado dessa forma infame e vil???”. Olhou lá pra fora, onde a multidão marchava sobre a avenida congestionada, e viu uma faixa enorme levantada pelos manifestantes onde se lia: “Não são só vinte centavos”. Virou-se para o caixa, que lhe informava a despesa e aguardava impaciente, e gritou, enquanto batia a mão no balcão com força, amassando o dinheiro:
- Acerola? ACEROLA???? Estou cansado de ser enganado!!!!!!!!!
Pegou o troco com violência e saiu.
Lá vai “seu” Alfredo, com a maleta de trabalho embaixo do braço e o inseparável guarda-chuva apontado para cima, subindo a avenida junto com a multidão, enquanto gritava a plenos pulmões:
- Vem pra rua!!! Vem pra rua!!!!