Alcoólicos Canônicos
Mais um dia a menos. É, gente fina. Verdade. E como! Pois o que hei de relatar, nas linhas que seguem, resulta de uma história para contar. E para recontar. Porque há outras histórias dentro de cada uma dessas historietas, como gostava de dizer João, “O Escriba”, cronista dos bons, que havia naquela cidade do interior. Seu apelido, carinhoso ao meu ver, fazia jus à sua função: escritor das mais belas crônicas que eram publicadas no Jornal A Voz do Vento, único no município. Mas com uma importância inexorável ao povo do lugar.
Pois se comecei com meu “mais um dia a menos”, devo justificar essa pressa toda, foi para, a exemplo das personagens dessa história, dar início ao que ocorria naquele boteco de esquina.
O “Teco-Teco”, o tal boteco, pertencia a um primo (de terceiro grau) de Olavo Compasso, professor de matemática em vias de se aposentar. O proprietário, Roger (é favor ler “Rogê”, pois o camarada, embora não ligasse para tanto, descendia de franceses e de italianos: seu sobrenome, em justiça disso, era “Carpetti”). E lá no Teco-Teco a turma toda – uns oito homens de bem, malgrado fossem exímios praticantes da “arte” do levantamento de copos – s’encontrava ao final do expediente (todo santo dia, por volta das seis da tarde), pra mode (a) botar o papo em dia, (b) discutir as relações sociais e/ou simplesmente (c) afogar as lágrimas em boas doses etílicas...
Já falei de João “O Escriba”, não? Figura particular, não deve, na presente crônica, me impedir, apesar de todos os sorrisos que lembrar de sua figura me provoca, falar dos outros sete amigos dele.
Pois começarei com o Pirulito. Aliás, com o Pirulito eu pretendo terminar as apresentações. Imagino que alguém, com um apelido desses, vá provocar certa curiosidade no respeitável leitor.
Ora, sobre quem falar, então, que não seja o Pai Francisco, borracheiro de mão cheia?
O “Pai” de seu nome remete, primeiramente, a algum tipo de Preto Véio, não? Eis uma primeira impressão marcante essa. E um sério engano. Malgrado fosse ele, indiscutivelmente um afrodescendente, nada tinha – não que se soubesse – com religiões cuja origem remetia à Mãe África. De forma alguma. O “Pai” aí era justo: tinha um coração enorme. Não deixava ninguém na mão. Se via criança chorando, dava um jeito de fazê-la sorrir. Até rir, se possível. Conciliava casais brigados, independente do motivo da briga. Dava conselhos dos bons, para os jovens apaixonados, para não se perderem nas malhas dos desenganos do coração. E alertava aos que pareciam estar em vias de se iludir nos descaminhos das drogas: “Viagem sem volta, filhote. Vai nessa não. A vida tem muito a te oferecer. E sem precisar de se perder. Vem comigo.” E apresentava fotos dos estragos feitos pelos químicos ilícitos, material didático cuidadosamente guardado e pacientemente apresentado nas palestras que apresentava aos jovens, aos adultos e a seus pais.
Carlinhos “Pedra 90”, talvez o mais intelectual dos oito, tinha tanto de coração quanto de cérebro. Figura ímpar no xadrez e noutros jogos de raciocínio. Há um ano mudou-se para outra terra e, desde então, não se tem notícias dele...
Eduardo Vila Régia, professor universitário de Geografia, vinha de Boigi das Luzes, toda sexta-feira, para se encontrar com os camaradas. Conhecia grande parte da Europa e do Brasil. E sempre afirmava: “Não troco essa terra verde e amarela por nada nesse – e, quem sabe, em outros – mundo. Nosso povo, nossas terras... Desconhecem similar em qualquer outra parte do globo.
Santa Cruz, talvez o mais religioso entre todos, conhecia, como ninguém, várias religiões. Era perguntar qualquer coisa sobre tal religião e ele começava a te dizer coisas que dificilmente alguém mais no mundo poderia suspeitar. Só possuía o ensino médio. Detalhe: incompleto... Terminara o segundo ano e contentava-se com o que aprendera até então.
Leonardo, “O Barbeiro” (o apelido é meio complicado de explicar, até porque poderia comprometer a vida pessoal do dito cujo), dava aulas de educação física na Escola União dos Corações de Deus, uma entidade filantrópica, sem fins lucrativos, que recebia e formava com carinho, jovens órfãos. Sim, sim, era uma entidade católica – ou algo do gênero.
Divino, o mais jovem dos oito, sonhava em ser advogado. “Sem advogado não se faz justiça; sem padre não se tem missa”, reafirmava isso sempre que lhe perguntavam sobre o porquê de empenhar-se tanto em estudar Direito.
Antonius Franciscus, neto de italianos, era o redator do Jornal A Voz do Vento. Graduado em Jornalismo e Mestre em Filosofia, sempre auxiliava os estudantes que tinham alguma dificuldade em pesquisar sobre temas solicitados na escola. Claro, claro: também dava uma mãozinha aos que precisavam redigir cartas a serem enviadas ao seu jornal. Quando possível, auxiliava os professores de Português da escola supracitada.
Edinho “Pé-de-Vento”, carteiro, sempre apressado, só parava para respirar quando no sagrado momento de sentar-se à mesa do boteco e levar um papo tranquilo com os amigos.
Chegamos ao fim das apresentações.
Voltemos à crônica. Ou, antes, à sua condução quanto aos fatos que mais possam interessar aos nossos leitores.
Os nove amigos – nove? Não eram oito, ao todo? Sim, eram; ocorre, entretanto, que um novo (e nono) amigo apareceu em uma ocasião muito especial. Ele fora participar do lançamento do livro de um sobrinho seu, que mora no município e acabou ficando por lá... Qual deles é? Que o criativo leitor descubra. Eu não quero dar palpites, tampouco revelar esse segredo de escritor...
Quanto à bebedeira, digna de levantadores de copos inveteráveis... Devo reconhecer que m’enganei. Esta crônica é sobre nove amigos que passaram a s’encontrar num boteco onde não se vende bebidas alcoólicas. Os tais alcoólicos canônicos pertencem a um grupo do qual eu até tentei falar, mas... Pertencem a uma outra crônica. Que ainda devo escrever...