As calças do guarda
Por vezes a ficção e a realidade confundem-se, a ponto de se misturar uma e outra. Neste caso, relato uma situação caricata em que a primeira ideia era de se tratar de uma anedota, não fosse esta história testemunhada por várias pessoas.
A Tocha de há quarenta anos já pouco tem a ver com a actual, quer na maneira de se encarar a vida, quer na sua composição geográfica. Quando a comecei a frequentar ainda não era uma vila, embora o número populacional fosse idêntico ao de hoje. O largo onde se faz a feira quinzenal foi alterado, tendo actualmente uma forma bem diferente. Outrora, várias vias lhe davam acesso, originando vários cruzamentos com a via principal, derivando daí acidentes com frequência. Continua com as mesmas dimensões, mas reduziu-se a um só cruzamento.
O mesmo se poderá dizer da envergadura da feira que diminuiu, motivado por se realizar agora também aos domingos, Dotada de uma enorme praia, também ela sofreu alterações na sua infra-estrutura. Mas o que quero realçar é o povo. Povo alegre e de fácil convívio, onde o prazer da mesa é um mandamento a que ninguém se furta. Resultado; apaixonei-me por esta gente a ponto de aqui comprar casa, acerca de trinta anos e provavelmente aqui acabarei os meus dias.
Portas quase sempre escancaradas, faziam-me recordar as casas da minha infância, onde entravamos com todo o à vontade. Daí, que naquele tempo, ninguém estranhar que uma pessoa que não fosse o proprietário entrasse sem pedir licença.
Era já noite cerrada quando o guarda Ricardo entrou em casa de Ana Rita sem bater à porta. Sem que ninguém desconfiasse, havia um arranjinho entre os dois, que aproveitavam o facto do marido da Ana trabalhar por turnos para estarem à vontade.
Naquele dia, como de costume à hora combinada já a Ana se encontrava no seu leito esperando o amante. Luz do candeeiro apagada era parte do acordo, uma exigência da Ana que entendia que aquele acto deveria ser o mais recatado possível, aliás, gabava-se que nem o marido algum dia a vira nua. Por conseguinte era assim a prática e nada de a contradizer ou arriscava-se a perder aqueles doces momentos. José, o marido, também acatava essa exigência com um certo orgulho, pois entendia nisso castidade e pudor.
Aquele adultério já se estendia por algum tempo, a ponto do guarda adormecer sem grande preocupação, sabendo que o marido só regressava lá para as seis da madrugada.
Um barulho de passos a ranger no soalho fizeram com que o guarda desse um salto que nem uma mola, sem mais, atirou-se para debaixo da cama, enquanto a Ana aflita lhe sussurrava para não fazer barulho.
Às escuras o marido começou a despir-se enquanto a esposa após lhe ter perguntado o porquê de ter vindo tão cedo, dava voltas à cabeça na forma de conseguir a fuga do amante.
- A maquina avariou-se e como não estávamos lá a fazer falta, o encarregado mandou-nos embora, mas dorme que eu vou fazer o mesmo.
Subitamente uma ideia surgiu na cabeça da esposa infiel.
- Ai meu querido marido, ainda bem que já aqui estás. Estou com uma dor de dentes que não posso, será que podias ir à farmácia comprar qualquer coisa para a dor?
Ainda que relutante por ter que acordar o farmacêutico, o pobre saltou da cama, vestiu-se e lá foi comprar o medicamento. A ocasião foi aproveitada pelo guarda para escapar.
Enquanto lhe aviava uns comprimidos, o farmacêutico mirava o cliente de alto a baixo e sem se conter mais perguntou:
- Ó Zé, tu agora és da Guarda Nacional Republicana?
- Ora que ideia a sua, senhor Francisco, - respondeu o Zé com uma gargalhada – mas por que o pergunta?
- Então porquê? Oh homem de Deus!... O que queres que eu diga à vista dessas calças da GNR que tens vestidas!?...
Após grande confusão e apesar da traição o casamento manteve-se. O guarda nunca mais foi visto. Soube-se mais tarde que pedira transferência para outro posto do país, porque o Zé era dos tesos e nunca se sabe o que um homem traído é capaz.
Nunca mais a casa da Ana Rita ficou de portas encostadas. No quarto, assim que escurecia, uma luz, ficava permanentemente acesa, ainda que se estivesse acordado ou a dormir, exigência do José, não fosse o diabo tecê-las e algum dia numa aflição vestir por engano as saias da esposa.