Nenhuma preocupação para o dia

Depois das dez, já não se ouve barulho na casa. A avó está no quarto dela e eu estou no meu, que vem a ser no sótão. Antigamente eram os tios que dormiam aqui. Agora eles já têm as suas próprias famílias, as suas próprias casas. E tudo ficou ainda mais vazio depois que o avô morreu. Preparo-me para dormir em uma cama antiga, daquelas que rangem aos menores movimentos. Sob a cabeceira, uma imagem de Jesus.

De repente, lembro-me que esqueci algo no banheiro lá embaixo. Não pretendia voltar a descer hoje, mas acabo me resignando. Decido ir descalço: o assoalho é todo de madeira e quem está lá embaixo escuta perfeitamente os passos aqui em cima. E também por causa da escada, que tem degraus especialmente barulhentos. Devagarzinho, eu desço.

Passo pela sala que foi escritório do meu avô e alcanço a cozinha, onde a mesa do café já está parcialmente preparada para a manhã. Sei que isso me obriga a escovar os dentes de novo, mas, que diabo, eu não resisto e pego alguns doces. Vou ao banheiro, pego o que havia esquecido lá e torno a subir ao sótão, cuidando para não acordar a avó.

Durmo bem, acordo com pássaros cantando e raios de sol entrando pela janela. E pensar que isto daqui é o centro da cidade! Abro a janela, vejo uma rua tranquila. Sinto como é agradável acordar por aqui e não ter nenhuma preocupação para o dia. Antes de descer, passo pelos outros quartos do sótão – é preciso sempre se certificar de que o tempo passa.

Lá embaixo já encontro a avó acordada. Não quero dar trabalho, mas ela se preocupa com o meu café, tira da geladeira novas gostosuras e pede que eu coma mais. Pois eu como e depois vou ler o jornal. Um jornal em que até eu escrevo, lá de longe, sem nunca ver publicado. A avó recorta as minhas colunas – tem por elas um carinho maior que o meu.

Sento à escrivaninha que foi do avô, folheio livros que foram os seus. Depois saio e dou uma caminhada pelo jardim. Como é bom não ter nenhuma preocupação para o dia!