Conversa a Três

Três negociantes desfrutavam uma fresca tarde de outono no quinto andar de um flat localizado na Major Diogo, Centro de São Paulo. Um ar temperado e umedecido por uma tempestade que se prometera e não cumpriu, e nuvens secas sombreavam aquele pátio amplamente observável.

Mesas com a face de vidro e pernas de ferro. Cadeiras inclinadas e revestidas de palha. Os três aristocratas observavam ao céu e apoiavam os pés a uma base que ficava abaixo da superfície da mesa.

Tudo ao som dos ventos ruidosos do trânsito que fazia alusão á Avenida Paulista, à Doutor Vieira de Carvalho, e a romaria desnorteada que peja a Praça da República no horário das cinco às seis e meia.

- Reparou? – Disse o paulistano. – São Paulo nunca para e nunca vai parar. Somos uma megalópole e o centro do capital brasileiro. Quem quer empreender, vem pra cá. Quem quer empresariar, vem pra cá. Quem quer trabalhar, vem pra cá... Não existe cidade mais sanguínea que essa nesse Brasil.

- Mas não se esqueça... – Pronunciou-se o fluminense. – Quem ergueu esta cidade foram os nordestinos, e digamos bem, quem pega no pesado, até hoje, são eles ainda.

- Ah vá... Eles vêm aqui procurar trabalho, e você quer o quê? Que eles sejam chamados numa entrevista pra diretor executivo? Por favor!

- Não é isso que estou falando. Apenas digo que não deveriam trabalhar em condições precárias, como estes capitalistas daqui os obrigam a fazer, e os pobres têm que aceitar, porque têm que sustentar casa e família.

- As condições são de acordo com o que pode ser oferecido. Já ouviu a expressão: Cavalo dado não se olha os dentes? É exatamente isso. Se eles vêm pra cá buscar oportunidades, é porque não têm aonde eles nasceram. E precisam se adaptar ás condições daqui, já que foi aqui que eles vieram buscar chances.

- Novamente, você está me interpretando mal, mas eu vou ser sumário. Não acho justo os nordestinos e os nortistas sujarem as calças de barro e abrirem calos nas mãos, e os paulistas sentados atrás de uma mesa de escritório, com ternos engomados e assinando escrituras e analisando títulos.

- Mas veja só... Você está falando como se os cariocas fossem OS ACOLHEDORES! Ah meu amigo, você está se esquecendo da lei áurea?

- Lei áurea? Mas... Não entendo, por que Lei Áurea?

- “Por que”? Certo, vou te falar o porquê. O que o senhor me diz de EXCLUSÃO SOCIAL?

- Ué, o que eu digo é que esse é um problema geral da sociedade brasileira.

- Ah sim, é geral, porém o senhor sabe como surgiram tantos morros na sua cidade maravilhosa?

- Ah sim, tudo bem, foram os escravos que não receberam oportunidades na época da abolição. Certo, mas o que isso tem a ver?

- Ora, o senhor diz que São Paulo explora os nordestinos e os nortistas, mas eu garanto uma coisa, existem muitos baianos, pernambucanos, sergipanos, alagoanos, que já pegaram no pesado e hoje gerenciam empresas. Já no Rio, o moleque nasce na favela, assiste a mãe lavar roupa por uns trocados, o pai assando carne e bebendo cerveja aos sábados, e também se acostuma a ouvir as balas zunindo no ouvido. E se o pobre não conseguir ser jogador de futebol, ele está condenado à vida de misérias que vem da estirpe da sua família e é característica da sua posição social, se é que dá pra chamar assim.

- Esse exemplo foi muitíssimo infeliz da parte do senhor. Eu estou falando de trabalhadores e não de posição social. Se o assunto é favela, nós temos que mudar de foco, porque em São Paulo está cheio, só que ao contrário de nós, os paulistas não sabem encarar esse problema, porque nem o nome certo eles pronunciam, eles chamam de “comunidade”.

- Ah, tá bom... Agora o senhor vai querer botar na balança as condições sociais de cada estado... Tenha a santa paciência. Enquanto o paulistano, nordestino, nortista, sulino, e quem mais for que esteja aqui, quando é seis da manhã está se preparando pra enfrentar um ônibus desconfortável, o carioca, em plena segunda-feira, está na praia vendo o sol nascer. E o senhor ainda quer discutir diferenças sociais?... Por favor...

- Olha, eu sinto um grande menosprezo quando o senhor se refere ao lugar onde eu nasci. Eu sugiro que o senhor comece a respeitar essa cidade que é um patrimônio cultural do território brasileiro e o quadro do país aos olhos do mundo. Então, por favor, mais consideração.

- Não é nada disso, não tenho nada contra o estado do Rio de Janeiro, eu somente tive de refutar as críticas do senhor ao estado de São Paulo, pois mal ou bem, este aqui é o maior centro econômico do nosso país.

- Oh sim, pois certo, se São Paulo é o alicerce do Brasil, o Rio é a fachada, e eu diria que de magnífico e cintilante mármore. Assim, se São Paulo é mina latente onde se vasculha o ouro, o Rio de Janeiro é exposição do baú de tesouro. Se os dois estados fossem dois minérios preciosos, São Paulo seria o jaspe e o Rio o diamante.

- Isso pra quem só conhece o Brasil sumariamente, com o devaneio de imaginar florestas infinitas de recursos, mulheres divinas e a praia de Copacabana, mas pergunta pra um gringo que mora aqui, pra ver o que dizem;

A discussão, já sendo um dissentimento, seguiu. Não vale mais ficar registrando os arrufos de cada um deles, com hífens antes das falas, pois esta altercação não terminaria hoje. Acontece é que o paulistano, já meio que exausto de argumentar, olhou pro mineiro.

- E você, condena o que? A dinâmica radical e lucrativa de São Paulo, ou o flagelo e a marginalização explícitos do Rio de Janeiro?

O mineiro afundou a bica de cigarro no cinzeiro de prata e espreguiçou-se para falar.

- Olha só. Um é do Rio e o outro é de São Paulo. Vocês não são de lugar fraco, são de capital sô. Agora, eu nasci numa cidadezinha chamada Ouro Preto. Na época em que o lugar da onde eu sou era apenas uma vila, Vila Rica, nasceu um rapaz chamado Antônio Francisco Lisboa. E essa pessoa se tornou o maior expoente da arte barroca e das artes plásticas de todo o Brasil, não só naquela época, mas de todo o período colonial. Tem gente que fala que ele é o maior de toda América. E aí o sujeito teve uma doença que nem os médicos sabiam o que era, não conseguiam dizer se era porfíria, lepra, escorbuto, sífilis ou sei lá mais o quê. Só que o certo é que aquilo inutilizou a mãos dele, porque era uma doença degenerativa, a ponto de um ajudante ter que amarrar uma ferramenta nos membros, pra ele poder trabalhar. E mesmo assim ele foi escultor, entalhador, desenhista e arquiteto, e por fim, o maior artista que a minha Minas já teve. Agora eu pergunto a vocês: eu sendo da terra de Aleijadinho, que sei eu pra quem é mais difícil a vida? Se é pros nordestinos que vêm tentar a sorte em São Paulo, ou pros ribeirinhos que estão presos nas comunidades do Rio de Janeiro. E eu sei lá sô...

De repente um trovão ribomba no céu. As gotas começam a descerem aceleradas. A tempestade enfim chegou e aqueles três foram para dentro da lanchonete. Fim de conversa