A Escravidão da Inspiração Lírico-Amorosa
Criação literária não se discute, é ficção da mente, embora muitas vezes tendo como fonte de inspiração a verdade interior de cada um, o sentimento; dessa forma, ninguém tem que concordar ou discordar de um poema de outrem; cada um o interpreta de acordo com as suas próprias ideias ou valores, mas o poema é do autor e é este quem manda nele.
É sobre a ideia da libertação psicológica do poeta através da poesia - manifestada por uma bela e jovem amiga em um texto poético - que eu discordo, porque, na maioria das vezes, o poeta não se liberta, ao contrário, se escraviza mais, pois, apesar de a matéria-prima do poema ser constituída mais de sonho, ilusão ou fantasia, o poeta é, antes de tudo, um homem – condicionado aos seus valores éticos, sociais e culturais. Eu diria, pois, que não há libertação através da poesia, no máximo, uma evasão da realidade que nos cerca.
Vejamos um exemplo disso no lirismo amoroso. Suponhamos um homem extremamente racional, dotado de uma natureza bastante cética, muitíssimo observador e sagaz, um estudioso da natureza humana, portanto, com bem poucas coisas – com relação ao seu semelhante – capazes de iludi-lo, espantá-lo ou impressioná-lo. Esse é o homem, limitado ao seu espaço físico e psicológico. Mas, como poeta, esse homem pode ir mais longe, viajando no sonho, na fantasia ou na ilusão. Pode chegar à musa eleita e cantar-lhe as suas canções de amor – algumas, ela nem sabe que são para ela, outras, apenas suspeita. É real esse amor e pode ser profundo e verdadeiro, pois ele a viu, apaixonou-se por sua beleza e o seu modo de ser (a graça feminil e a beleza das mulheres são a grande fraqueza dos poetas), e isso mexe com a sua inspiração poética e esta desata os poemas.
Exatamente aí começa o conflito homem x poeta. O poeta não tem idade, o homem, sim: pode ser bem maduro, enquanto a mulher talvez ainda esteja abaixo na faixa dos 40; o poeta alcança a musa pela Internet, mas, geograficamente, homem e mulher estão separados por uma imensidão de águas e terras; o poeta e a musa são livres como dois passarinhos, mas tanto o homem quanto a mulher podem ter laços conjugais; por fim, o poeta é um ser transcendental, etéreo, não transa, mas o homem pode ser romântico, apaixonado e dotado de uma sensualidade à flor da pele.
Na prática, revela-se uma quase completa impossibilidade de relação afetiva entre esse homem e essa mulher, exceto no plano puramente platônico, que pode satisfazer o poeta, nunca o homem, que olha para ela todos os dias com os olhos ardentes de desejo. E, enquanto o poeta, livre, leve e solto, exercitando a sua platônica paixão, beija e abraça a musa com os seus versos, o homem sofre - pela impossibilidade de ter a mulher nos seus braços. E, nesse contexto psico-literário, quanto mais o poeta produz versos, mais cai o homem no seu abismo de impossibilidade, para o qual o peso da ilusão que carrega no peito acelera a sua queda. Onde e quando poderá a sua poesia lírico-amorosa libertá-lo?
Concluo, pois, que a poesia pode proporcionar uma evasão da realidade - em menor grau, é claro, da ocasionada pelo sono ou droga psicoativa (inclusive o álcool) - mas nunca uma libertação. Ao contrário, se essa evasão se torna repetitiva para vivenciar o sonho, a ilusão ou a fantasia, transforma-se em escravidão. Poética, mas sempre uma escravidão...