Antes de partir.
Em um determinado momento, enquanto aguardava minha condução no ponto de ônibus, reparei um homem jovem e muito bem vestido, questionando-se em voz baixa algumas palavras impronunciáveis. Parecia tenso e muito preocupado. Aproximei-me dele e o interpelei se poderia ajudar. Como que agraciado por uma solução instantânea, aquele jovem prontamente disparou uma porção de palavras ao meu encontro. Ainda não tinha percebido o nexo na história, mas decidi escutar até o fim.
Certa vez, ouvi falar de um homem por volta dos seus 40 anos instalado no leito de um hospital, no alto de um prédio antigo de uma cidade qualquer. E enquanto observava o fluxo dos veículos lá embaixo pela janela a que seu quarto dava acesso, notei que sentia o fardo dos pensamentos negativos que invadiam sua mente.
Posso imaginar o quão angustiante deve ser para alguém receber a notícia de que se tem saúde para somente mais 2 ou 3 meses de vida. Câncer no fígado em estágio terminal. Isso mais um monte de termos técnicos foram pronunciados por 2 médicos a sua frente, para explicar que todo o procedimento disponível era simplesmente ineficaz. Lembro-me de que muito embora a notícia tenha sido inesperada aquele homem reagiu com assustadora frieza. Sem interromper o discurso de alento ou esboçar qualquer reação, o homem simplesmente se calou e esperou os médicos irem embora para tranquilamente retornar a contemplar o fluxo de veículos que se desenhava naquela metrópole.
Gradualmente, pude perceber o processo de coisificação daquele ser. Já não se tratava mais de um homem com seus desejos, tentações e necessidades. Por fora, parecia mais com um objeto qualquer, largado e com seu prazo de validade prestes a vencer.
Por outro lado, internamente àquele objeto/ser, desenrolava-se uma constante batalha entre a resignação à certeza da morte iminente e a resistência ao pensamento fúnebre. Entendi que contemplar aquelas vias cheias de semáforos e entupidas de carro, era na verdade um ponto de fuga da situação na qual se encontrava e de acesso às suas memórias mais longínquas.
A realidade é que nunca estamos preparados para aceitar a nossa morte. O tempo nos impõe seu próprio ritmo sem nem ao menos nos questionar se estamos prontos ou não. Assim, sentado sozinho num leito do 11º andar de um prédio com 2 agulhas espetadas em cada braço, levando soro e analgésico a suas veias, notei que o homem fez questão de estudar meticulosamente o meio ao seu redor.
O quarto tratava-se de um espaço mediano preenchido com 2 leitos, sendo um deles defronte a uma janela coberta por uma persiana azul-enferrujada. A solidão do quarto mal iluminado era minimizada pela presença de um radinho de pilha sintonizado em uma estação onde se podia ouvir uma série de músicas nostálgicas. No momento, tocava Rua Ramalhete, um clássico dos anos 1970. Além do mais, havia uma estante do lado da janela repleta de livros e revistas antigas, os quais eram frutos de doações dos moradores da comunidade. Diante de toda essa análise, notei que o homem repreendeu uma lágrima que lhe ousou saltar aos olhos. À medida que a noite se aproximava, sua solidão aumentava.
Aquele homem era assustadoramente normal. Tinha por volta de 1,75 metro de altura, cabelos pretos e levemente encaracolados muito bem aparados, olhos castanhos, pele parda e rosto ovalado. A julgar por sua aparência, denotava ser uns 5 anos mais novo. O pouco que sei desse ser é que não tinha muitos amigos nem fazia questão de tê-los.
Sinceramente, ainda não sei seu nome. Muito provavelmente também deve ser algo estranhamente normal, do tipo: João, José ou Felipe. Entretanto, sei que este homem é divorciado, tem um filho já casado e atualmente trabalha em uma repartição pública. O curioso é que dos 2 dias a que esteve submetido no hospital, ainda não tinha recebido nenhuma visita. Talvez não tenha sido tão importante assim na vida de alguém.
Pela primeira vez em muito tempo, aquele homem ousou questionar a frieza de seus sentimentos. Sempre se acostumara a agir por inércia, desse modo, fugir de sua zona de conforto envolvia muita resistência. Não que fosse uma pessoa má, simplesmente evitava ao máximo os constrangimentos e aborrecimentos decorrentes do contato humano.
Diante do silêncio constantemente cortado pelas músicas que tocavam no radinho, aquele homem escolheu ao acaso um livro da estante ao seu lado. Seus pensamentos já não eram reconfortantes o bastante.
Pronto, escolheu uma página qualquer e começou a ler. A julgar pelas gravuras e pelos personagens da história, tratava-se de um livro infantil. Olhou a capa leu o título e depois sorriu. Finalmente algo naquele dia o arrancara tal gesto. “ O Pequeno Príncipe”, sempre ouvira dizer que se tratava de um clássico da literatura, porém nunca tivera interesse o suficiente para ler até o fim. Engraçado, parecia que a vida tinha lhe armado um jeito todo especial de fazê-lo ler até o fim dessa vez. Afinal, naquela noite, tempo era o que não lhe faltava.
Conforme lia aquele livro de imagens coloridas e letras grandes, percebeu que não se tratava simplesmente de um livro infantil. Viu-se naqueles personagens da mesma forma que via nos outros seus próprios defeitos. Algo porém, o fez pensar que talvez aquele livro tivesse sido escrito especialmente para ele.
Dessa vez, por mais que tentasse não conseguiu conter algumas lágrimas que lhe saltaram aos olhos. No diálogo entre a raposa e o pequeno príncipe compreendeu o que lhe faltou em toda sua vida.
... –“ Não, disse o principezinho. Eu procuro amigos. Que quer dizer cativar ?
É uma coisa muito esquecida disse a raposa. Significa criar laços.
- Criar laços ?
- Exatamente, disse a raposa. Tu não és para mim senão um garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos. E eu não tenho necessidade de ti. E tu não tens também necessidade de mim. Não passo a teus olhos de uma raposa igual a cem mil outras raposas. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim único no mundo. E eu serei para ti única no mundo.
Começo a compreender, disse o principezinho. Existe uma flor... eu creio que ela me cativou”
“... Minha vida é monótona. Eu caço as galinhas e os homens me caçam. Todas as galinhas se parecem e todos os homens se parecem também. E por isso me aborreço um pouco. Mas se tu me cativas, minha vida será como que cheia de sol. Conhecerei um barulho de passos que será diferente dos outros. Os outros passos me fazem entrar para debaixo da terra. O teu me chamará para fora da toca, como se fosse música. E depois olha. Vês, lá longe, os campos de trigo ? Eu não como pão. O trigo para mim é inútil. Os campos de trigo não me lembram coisa alguma. E isso é triste! Mas tu tens cabelos cor de ouro. Então será maravilhoso quando me tiveres cativado. O trigo que é dourado fará lembrar-me de ti. E eu amarei o barulho do vento no trigo.”
E por fim.
“.... Assim o principezinho cativou a raposa. Mas quando chegou a hora da partida a raposa disse:
- ah, eu vou chorar.
- A culpa é tua, disse o principezinho, eu não queria fazer mal; mas tu quiseste que eu te cativasse.
- Quis, disse a raposa.
- Mas tu vai chorar, disse o principezinho.
Vou, disse a raposa.
- Então, não sais lucrando nada !
Eu lucro, disse a raposa, por causa da cor do trigo.
Depois ela acrescentou:
- vai rever as rosas. Tu compreenderás que a tua é única no mundo....”
E tendo lido isso, notei que o homem questionou-se longamente acerca da profundida destas palavras. Não se tratava de um mero diálogo fantasioso. A simplicidade das metáforas daquele livro era totalmente enganadora. Percebeu que podia falar horas e horas acerca desse pequeno trecho lido. “40 anos de idade e ainda não sei nada sobre a vida” Repetiu o homem em voz baixa.
Talvez sua vida inteira fosse um engano. Talvez, a comodidade de sua zona de conforto o tenha feito desistir de ousar para além de suas crenças limitantes. Sentiu-se como um personagem da alegoria da caverna escrita por Platão, que após muito tempo percebe que o que entendia por realidade não passava de sombras projetadas na parede.
Talvez de fato, tenha quisto acreditar que era autossuficiente e se bastava no mundo. Como se o homem não fosse um ser social. Talvez de fato, o carinho das boas amizades fosse o que lhe faltava. Em meio a tantas hipóteses e condições, a realidade é que aquele homem resumia-se a um moribundo choroso e solitário no 11º andar de um prédio qualquer.
O locutor da rádio ( sua única voz amiga por sinal ), anunciava um dos sucessos de Márcio Greyck, Aparências. De fato, sua vida resumia à aparências e nada mais. Quantas vontades e desejos reprimidos simplesmente por não saber se expressar, por temor dos resultados ou para evitar constrangimentos ? Esquece-se de viver todas as vezes que fingimos esquecer o que queremos. A morte, o quarto, o livro foram simples processos para se chegar a essa conclusão.
O silêncio daquele quarto era revelador. Se aquelas paredes falassem seriam testemunhas de que muitas vezes esquecemos que cultivar a amizade é doar uma parte do que somos a outros, para ,em troca, receber partes equivalentes da identidade de outras pessoas. Razão pela qual, a amizade sincera nunca é prejudicial, pois a parte que ganhamos mais do que compensa o vazio da saudade, da distância, e da morte.
Sentindo-se angustiado, notei que o homem quis fazer algo novo. Algo do qual poderia se orgulhar. Entretanto, sua motivação não encontrou meios pelos quais se expressar. Sua doença encarregava-se de literalmente aprisionar suas últimas e talvez únicas esperanças. Observar o tráfego de veículos pela janela nunca fora tão alentador. Olhar aqueles carros e ônibus pequeninos lá embaixo, cheios de pessoas cada qual com suas esperanças e medos particulares, o fez mergulhar em um universo paralelo. Tudo isso o fez questionar se sua existência fora insignificante e sem sentido. Questionou-se se ,pelo menos em parte, teria se tornado, o homem que imaginara para si quando criança. Quantas hipóteses e poucas respostas !
A iminência da morte o fez conhecer uma parte de si a qual nem imaginara possuir. De que modo poderia amainar tanto sofrimento ? Ousou uma resposta mas não conseguiu. Pouco a pouco tinha cada vez mais a impressão de que tudo o que devia fazer era simplesmente esperar. Sim, esperar a morte chegar. Tal qual uma pessoa que se amarra aos trilhos de um trem e aguarda pelo impacto. Não haveria solução, não haveria milagres, muito menos heróis e mocinhas com os quais fugir.
Já não fazia mais questão de dormir ou relaxar. Queria aproveitar cada segundo, mesmo que de intensa dor. O rádio porém, o fez despertar para algo novo. O locutor anunciou uma canção que para ele tinha um significado especial. “ Hey jude, don’t make it bad. Take a sad song and make it better .“ Sentiu a letra retesar cada extremidade de seus músculos. Tinha a impressão que cada um dos Beatles direcionava especialmente para si palavras de conforto. “ And any time you feel the pain, hey Jude refrain. Don’t carry the world upon your shoulders..” Era 6 anos mais novo que a música, por isso sentiu-se como uma criança alentada pela mãe.
Acreditar em destino ou coincidência já não mudaria muita coisa, que diferença faria a essa altura do campeonato ? Movido pelo interesse de transpor seus sentimentos para um papel, acabou por ter uma nobre ideia. Decidiu escrever cada conclusão a que chegara, principalmente nesses últimos dias. Queria que sua vida fosse útil, mesmo que não pudesse aproveitar. Queria, de algum modo, passar adiante o pouco que a vida lhe ensinara a valorizar.
Uma vez escrito seu compilado de lições, não sabia como nem a quem entregar. por isso pediu a um de seus médicos que entregasse os papéis, fruto de horas e horas de pensamento em busca das melhores palavras, a algum jovem que melhor que conviesse.
Eu tive a oportunidade de ouvir essa história por aquele jovem recém formado em medicina enquanto aguardava meu ônibus. Juntei os relatos do médico, o qual sofria por não saber como ajudar seu primeiro paciente, com o apanhado de papéis que logo em seguida ele me entregou antes de nos despedirmos. Sensibilizei-me com a história.Portanto, decidi externar o relato desse moribundo. Ainda não sei se este homem já morreu ou vive vegetando em um leito de um hospital qualquer de uma cidade qualquer. A mim, o mais importante foi, dando valor a esse homem, tomar conhecimento dessa história e poder iniciar um caminho de autocorreção e de valorização da vida. Uma escolha, que por sinal, se faz constantemente.