Sabores da infância e juventude
Contrariando todas as expectativas tanto minhas quanto da minha família e pessoas mais próximas que já coadjuvaram lances poucos comuns comigo na cozinha, hoje cozinho bem, desde que no meu espaço. Gosto de saber, de olhos fechados, onde estão meus mantimentos, panelas e condimentos. Confesso que até sinto prazer, um prazer que expurga as chateações, os dissabores e mesmo os assuntos mal resolvidos. Apesar disso, ainda não cheguei no ponto da “especialidade”.
Falo em especialidade porque fui rodeada por uma família que era mestra em culinária. Minha mãe era especialista em ambrosia e arroz de leite. Aquí um parêntese: sempre que entro em um restaurante e me deparo com um dos dois fico amolada. Como pode o restaurante oferecer esses doces se eles nunca chegarão aos pés dos da Dona Nita? Jamais me sirvo deles. Tem gente que estranha, mas a sensação é essa mesmo e a contrariedade imediata.
Por outro lado, não sou nada exigente com a comida. Gosto de comida simples e bem feita, independentemente de onde eu vá me servir, contrariando também o meu passado quando criança. Fui a primeira dentre três, também a primeira depois da perda de um irmão recém-nascido. Meus pais dedicaram-se à mim a tal ponto que eu era, certamente, uma criança muito mimada. Até uns sete anos não comia qualquer legume ou verdura e vez ou outra determinava que não me alimentaria. Meus pais enlouqueciam e eu dizia: “só batata frita no galinheiro da vó”. E lá saia a minha mãe da Pinheiro Machado comigo por um braço e com o prato de batatas fritas no outro rumo à Marechal Floriano. Punha-me sentada em um banquinho em frente ao galinheiro da Vó Rosalina e o prato era devorado rapidamente. Estranho ... por que olhar para as galinhas se há tantos outros bichos mais bonitos, dóceis e limpos? Não sei, mas era com as galinhas que eu gostava de comer.
Com o passar do tempo minhas manias foram sendo tiradas à força e eu caí na realidade, graças à Deus.
Mas de especialidades eu não esqueço e gostaria muito de ser conhecida por uma delas, a exemplo dos bifes na chapa no fogão à lenha da vó, dos merengues da Tia Noêmia, dos papos de anjo da Tia Evy e do mousse de chocolate da Dona Almerinda Aguiar. Deliciava-me como se fossem manjares dos deuses e sinto o seu sabor até hoje.
Nos meus aniversários o melhor presente sempre foi um vidro de papo de anjo que a Tia Evy me mandava. Lembro-me que o vidro era de Nescafé grande e mais parecia uma peça de decoração. Era lindo com aquelas bolas amarelas flutuantes.
Os merengues da Tia Noêmia não ficavam prá trás. Costumáva-mos visitá-la vez ou outra no Arroio do Cartucho e, quando da nossa chegada, ela puxava de cima de um armário da cozinha uma enorme lata. Colocava-a numa mesinha da sala e deixava-a livre para as nossas mãos. Ah ... quantos merengues eu comia naquelas tardes.
Meu tio, seu esposo, de nome Lamão, era surdo-mudo. Olhando-me só sorria com o meu contentamento. Eu sentia que o fazia feliz com a minha ganância por merengues. Passava dos limites, eu sei, mas deixava-o satisfeito. Ponto e sem maiores considerações.
Já os bifes na chapa eram preparados com tempero umas duas horas antes, absorviam o sal e os condimentos com maestria e eram literalmente jogados na chapa sem pudor. Cortados bem finos, na sua borda geralmente se sobressaia uma pequena lasca de gordura e, quando tirados da chapa, estavam sequinhos e, ao mesmo tempo, suculentos. O sabor era sem igual.
O mousse de chocolate tem segredo, um segredo que custei entender. Ao chocolate meio amargo adiciona-se barrinhas de chocolate REFEIÇÃO da Neugebauer, mais antigas que eu. A especialidade é tão grande e apetitosa prá mim que juntou-se ao lindo presente de casamento que recebí do casal Aguiar quando casei-me pela primeira vez.
Sabores merecedores de um Oscar, sabores que ficaram na minha memória no lugar certinho do quadrante “coisas boas da minha vida”.
(crônica publicada no livro PROSA NA VARANDA II - lançado em 24/07/2014)