O que vamos definir, afinal?
O QUE VAMOS DEFINIR, AFINAL?
(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 29.07.14)
Espiando assim bem de longe essas eleições que se aproximam, fica a recorrente impressão de que não conseguimos distinguir com clareza o que precisa ser feito. Tal impressão renasce das declarações que começam a ser dadas, alfinetando os adversários próximos (aqueles que se comporão no segundo turno) e distantes (que serão os contendores a bater), mas robustece-se com maior vigor e inclemência com tudo o que já rola nas redes sociais, ampla arena de confrontos múltiplos, de escaramuças sangrentas, de cultivo de ódios ancestrais e injustificáveis. E de demonstrações de extrema deselegância e falta de civilidade.
No entanto, trata-se apenas de uma eleição. Mas isto, obviamente, não é verdade: para muita gente, significa garantir o salário por mais quatro doces anos. Outros veem o embate como confronto de ideias e/ou ideologias e, por consequência, como uma decisão entre visões de futuro distintas para o País, o Estado e, soberanamente, para o povo brasileiro.
Assim, como em eleições anteriores, fica sempre a incômoda sensação de que somos chamados a escolher o novo Papa. A escolher a nova Madre Superiora do Convento. A buscar alguém que vista o Corpo Puríssimo de Maria, quase como se fôssemos instigados a buscar entre os candidatos e candidatas, e sufragar pelo voto universal, nada menos do que o homem casto, do que a mulher virgem. Queremos mesmo eleger candidatos que não tocaram o pó das estradas, que se isolaram das asperezas da vida?
Felizmente, só temos seres humanos em quem votar. Gente que não é perfeita, que já cometeu e, com certeza, ainda comete os seus pecados, maiores ou menores. Devemos condenar algum candidato, riscá-lo da nossa lista de preferências, porque um dia fumou um baseado, cheirou uma coca, bebeu em demasia, envolveu-se com prostitutas ou participou de algum episódio meio escuso, situado naquela zona nebulosa que impede o juízo absoluto sobre o certo e o errado, a distinção maniqueista entre o bem e o mal?
Se critérios como esses predominarem, não sobrará ninguém, a começar por nós mesmos, eleitores. Além disso, convenhamos: o homem impoluto, a mulher pura, podem revelar-se desastrosos administradores públicos, horrorosos negociadores, lamentáveis julgadores - podem ter as piores ideias possíveis para melhorar o mundo, já que sofrerão talvez a tentação de privilegiar o que se aproxime do seu modelo de vida e comportamento. Vocês já pensaram como seria triste viver num mundo em que todas as pessoas fossem homogêneas, iguais, similares, se todos fossem iguais a você? Seria muito pior do que o comunismo.
Então, vamos avaliar o que importa de verdade, e fazer a nossa escolha de acordo com considerações mais elevadas. Não estão em disputa, não estarão em disputa, virtudes pessoais contra defeitos pessoais, mas, sim, projetos de futuro para o Brasil. Ou aceitamos que a prioridade deve ser dada ao ser humano, que governo e empresas privadas têm de trabalhar para o ser humano - para todos os seres humanos que habitam o Brasil - ou confiamos ser melhor entregar tudo ao deus mercado e deixar que as empresas, e especialmente as grandes corporações, ajam com desenvoltura fazendo o que lhes pareça melhor porque isto automaticamente será melhor para o País e para as pessoas, ainda que o seja para uma minoria da população.
Ou aceitamos e desejamos que mais e mais brasileiros ascendam a melhores condições de vida ou lutamos para manter privilégios polpudos para uma minoria, torcendo desesperadamente para contarmo-nos entre esse grupo de abençoados.
Mudar é sempre positivo, desde que seja uma mudança para melhor. Para piorar, fiquemos com as coisas como estão. É infantil e irresponsável ser simplesmente contra sem dispor de alternativas que apontem verdadeiramente para perspectivas de avanço - pelo menos no sincero e desprendido entendimento de cada qual de nós.
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Amilcar Neves é escritor com oito livros de ficção publicados. A partir de 26 de agosto de 2013 integra o Conselho Estadual de Cultura, na vaga destinada à Academia Catarinense de Letras, onde ocupa a Cadeira nº 32.
(...) aquele 1965 em que éramos jovens, românticos e puros. Incontaminadamente puros. (...) Havia uma visão do coletivo, que hoje se perdeu, como também se extraviou (ou até soa ridícula) aquele ideia de "salvar a pátria", de interessar-se pelos problemas do País e do mundo porque eles habitavam nossa consciência.
Flávio Tavares, "Memórias do Esquecimento"