Se eu tivesse tido um filho

Agradeço à Deus os pais que tive. O orgulho é tão grande que estufo o peito toda vez que falo neles. Meu pai me deixou aos vinte anos mas, mesmo assim, deixou encrustados em praça pública sugestões de valores e a educação que eu deveria seguir. Não sei se o retribuí, mas o sinto em pequenas atitudes seguidamente. Minha mãe, ainda tão presente, nem se fala. Mas fui criada, especialmente por meu pai, de forma extremamente rígida, como se no futuro o mundo fosse abrir alas para eu passar como bela passista de uma escola de samba. Já minha mãe era totalmente flexível e, ao mesmo tempo, desligada de alguns detalhes que, se eu não tivesse aprendido até os vinte, não aprenderia mais.

Tenho certeza de que ser pai e mãe deve ser tarefa complicada, aliada ao desprendimento e prazer.

Não tive filhos. Por quê? Até hoje não sei. Nunca tive problemas de saúde que me impedisse. Os anos foram passando, meus amores se espassando e a vida transcorrendo freneticamente sem que eu conseguisse olhar prá trás e sem, em muitos períodos, poder fazer alguns planos. Dessa forma, quando me questionam (e como questionam!): “tu és feliz não sendo mãe?” eu respondo: “sim, por que não?”.

Acredito que o instinto maternal esteja em praticamente toda mulher e que “ser mãe” vai muito além de gerar. Fui mãe sim muitas vezes na minha vida e continuo sendo. Amo crianças e me afino por demais com os jovens, com os quais trabalhei a maior parte da minha vida.

Sei o que significa abrir mão do que se quer para auxliar na alimentação, vestuário e instrução à uma ou mais crianças por um longo tempo. Sei.

Mas, retomando o título dessa crônica, se eu tivesse tido um filho? Ah ... se eu tivesse tido um filho, talvez eu também buscasse encrustrar em praça pública algumas sugestões que atualmente julgo extremamente importantes, levando em conta as infindáveis alegrias e uns tantos tropeços que tive pela minha caminhada até aqui:

Tiraria um tempo, todo dia, para sentar-me no chão e brincar, inventar, fantasiar um mundo maravilhoso, recheado de fábulas – no tempo que fosse possível, pois um filho cresce rápido demais.

Levaria meu filho ao cinema, ao teatro e, especialmente, ao circo. O palhaço tem um significado fantástico prá mim. Todos somos palhaços mais dia menos dia;

Instigaria meu filho a dormir lendo histórias, entrando com ele no mundo dos livros. Ler ainda é uma das mais abençoadas terapias inventadas, além de auxiliar na formação, interação, interpretação e expressão de todos nós.

Daria ao meu filho um carrinho de rolimã e me esconderia atrás de um muro rezando para que ele não se machucasse. Mas ele andaria num carrinho de rolimã sim!

Ensinaria meu filho a cantar o Hino Nacional com a postura adequada e com os olhos voltados para a bandeira. Lutaria para que ele tivesse orgulho da nação, mesmo enfrentando as barbáries dos homens.

Instigaria-o a ter um hobby, nem que fosse um álbum de figurinhas. A expectativa aliada à alegria é mágica.

Tentaria, de alguma forma, inserí-lo num meio ambiente saudável, onde ele fosse responsável por todas as suas ações. No meu tempo jogar papel de bala pela janela do carro não era reprimido.

Buscaria tirar seus medos mais intensos, a exemplo de medo de altura, de tumulto e por aí afora. Lembro-me de nunca ter podido sentar numa mureta de uma área aberta na casa da Tia Teresinha Linde.

Procuraria aproximá-lo dos animais e, se possível, daria um cãozinho a ele. Nunca pude ter um cão em casa. Viví somente com o Rex (o cachorro do meu pai, protagonista de uma das crônicas do Prosa na Varanda anterior). Mas ele não era meu. Eu não o alimentava.

Tentaria fazê-lo entender que o mundo é muito maior fora da Internet. Que ela é fantástica, mas não pode tomar conta da sua vida vinte e quatro horas do dia. Que jogos virtuais não têm o valor de um jogo de futebol , vôlei ou basquete ao vivo, com direito à risadas das pegadinhas próprias e dos amigos.

Faria-o entender que ele não é e não será melhor que ninguém. Que ele precisa estudar, tirar boas notas, mas nunca ser o melhor da turma. A frustração mais tarde, quando há alguma derrota, é grande demais.

Ensinaria-o a dar prioridade, cumprimentar e respeitar os mais velhos. Isto, prá mim, não tem idade.

E, por fim, amaria-o tanto, mas tanto que morreria chorando no escuro, com as mãos grudadas no rosto, toda vez que ele saísse de casa, mas jamais demonstraria tamanho desespero, pois ele foi feito prá vida, prá ser feliz e não prá mim.

(crônica publicada no livro PROSA NA VARANDA II - lançado em 24/07/2014)

Rosalva
Enviado por Rosalva em 28/07/2014
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