Tirando a minha terra da gaveta

Nascí, passei a minha infância e juventude aqui. Feliz! Aos 18 anos rumei para Porto Alegre para continuar os estudos. Por lá fiquei, afora sete bons anos em São Paulo. Trinta e seis anos longe da minha terra, embora, sempre que pudesse buscasse o meu abrigo por aqui. Mas meu mundo tomou outro rumo. Minhas andanças tinham outros caminhos, meus planos também. Olhando prá trás posso afirmar que, apesar de todo o amor por Santo Antônio, não conseguia enxergar-me pelas suas ruas em dias de semana. Meus vínculos não se perderiam, pois sempre fui atrás dos meus amores mas, por outro lado, as bandas de lá já haviam moldado a minha vida.

De repente eis que estou no “celeiro do mundo” novamente, por força das circunstâncias. E novamente feliz! Venho descobrindo que a minha terra evoluiu muito nesse tempo. Muitas coisas que antes eu não percebia hoje se fazem presentes de uma forma muito intensa. Santo Antônio está menos pesada, menos cheia de “frufrus”, mais aberta, mais simples. A simplicidade que sempre busquei tem mostrado a cara todos os dias, com demonstrações simples, mas extremamente verdadeiras.

Minha casa é outra, mas nela já ajeitei as minhas coisinhas e tenho vivido tranquila até mesmo ao lado de dois cães (quem diria!). Meus novos companheiros ficam felizes quando abro a porta dos fundos todos os dias e, sorrateiramente, com os olhos, pedem os “palitinhos” com alegria.

A Avenina Affonso Porto Emerim me encanta com os mil pés andantes de todas as idades, em todas as horas, que por lá transitam. Bicicletas, muitas bicicletas passeiam com gente alegre acenando com carinho. Ontem mesmo encontrei o talentoso Zelito ziguezagueando com sua bicicleta na rua Paraná. Ao mesmo tempo que vejo as pessoas, levanto os olhos e enxergo morros verdes que circundam a cidade - antes eu não os enxergava. São lindos. E vêm sendo retratados por fotógrafos ímpares que só existem por aqui e pelos caminhos de Santo Antônio, a exemplo do Jaime Muller, Marcelo Fernandes, Guto Monteiro, João Albé Gonçalves e Ivan de Paula, dentre outros.

Na noite, encontro mulheres solteiras, separadas, divorciadas e viúvas, de todas as idades, curtindo a vida sem qualquer constrangimento, o que antes era prática rara. A melhor idade faz ginástica, pilates, musculação, natação e por aí afora, com horários marcados e uma disciplina de dar gosto. O mundo evoluiu e, a meu ver, Santo Antônio acompanhou essa evolução de forma sábia, pelo menos no que tange às pessoas com as quais tenho convivido. Celebrar a vida passou a ser algo muito comum por aqui.

Meus amigos de infância e juventude continuam os mesmos. Os encontros são mais frequentes, nem que seja no supermercado. Lá trocamos figurinhas e ainda rimos das antigas e atuais trapalhadas. Nossa idade trouxe algumas mudanças, mas nossa afinidade nos garante vida longa em amizade.

Minha comadre, Claire, com suas portas sempre abertas, hoje está muito mais próxima e seus netos são meus encantos, meus netos também. O Marquinhos já tem garantidos na minha geladeira toddynho e coca-cola para as visitas inusitadas.

Meus primos, a união que eu garanto é um tributo ao amor recebido da Vó Rosalina, têm me provado que a nossa família não ficou desestruturada com tantas perdas. Levantamos a bandeira e saímos pelas ruas propagando que nos entendemos, apesar das diferenças, e estamos dispostos a sermos felizes juntos pelo tempo que nos for destinado. Amo passar na rua e receber uma cantada maledicente do Beto, virar macaca de auditório do Diogo, ter o Mario Antônio como companheiro e almoçar de última hora na Lena. E o pudim de coco que a Tia Maria faz prá mim? E os ovos das galinhas? É muita coisa boa para uma pessoa só, que passou tanto tempo longe. É um mágico reencontro.

Tudo isso é prazer, é reencontrar-me com inúmeras coisas que estavam guardadas, mas que nunca saíram das minhas gavetas. E por falar em gavetas, mesmo tendo vivido até aqui uma vida de camaleoa, o conteúdo de algumas gavetas somente foram transferidos, porque os meus mimos, aquilo que realmente importa, seguem comigo prá qualquer lugar e, pelo visto, agora se assentaram.

(crônica publicada no livro PROSA NA VARANDA II - lançado em 24/07/2014)

Rosalva
Enviado por Rosalva em 28/07/2014
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