Meu bebê

Meu bebê

Dureza perder a minha mãe que eu pensava ser eterna. Dureza vê-la partir como um passarinho, sabendo que ainda faltava tantas coisas prá ela se alegrar. Seus olhos, nos últimos meses, não brilhavam mais – eram secos. Dureza perceber que a sua hora não foi decidida por mim; e sim por Ele e não poder lamentar todos os esforços auferidos para a sua sobrevivência que não lograram êxito. Minha mãe era o meu bebê, ou melhor: passou a ser o meu bebê desde que chegou à velhice, de idade, porque a cabeça permaneceu lúcida como sempre.

Lendo a crônica do Carpinejar na Zero Hora, no dia 06 de outubro de 2013, intitulada "Pai de meu pai" eu chorei, chorei muito - baixinho, sem ninguém perceber. Ela inicia assim: "Há uma quebra na história familiar onde as idades se acumulam e se sobrepõem e a ordem natural não tem sentido: é quando o filho se torna pai de seu pai." E foi exatamente assim que aconteceu, assim como acontece naturalmente e a gente não se dá conta.

Minha mãe, viuva aos 47 anos, foi uma mulher franzina, sem muita vaidade (exceto em relação a cremes, talcos e perfumes) e, sobretudo, uma guerreira, tendo como campo de atuação o seu lar. Não era afeita à atividades sociais. Com habilidade continuou a educação das três filhas com afinco, enfrentando todos os revezes da vida de forma altiva. Quedava-se somente no quarto, o seu abrigo até o final dos seus dias. Sempre gostou de casa cheia, novidades, palavras cruzadas, jogos de futebol, vôlei e basquete e jamais tombou-se para o desconhecido. Tinha uma curiosidade nata de adolescente e jamais ficou sem saber o que quer que fosse por vergonha de questionar. Seu lado quase inocente era conhecido por muitos e, graças a ele, angariou amigos de todas as idades, sempre rodeando-a de carinhos. E mereceu! A eles fazia uma ambrosia sem igual a qualquer hora do dia e costumava brindá-los com um "entendimento natural", digno de pessoas de alma boa. Acredito que essa característica foi herança genética da sua mãe, a Vó Rosalina, uma mulher ímpar.

Por outro lado, quando virou o meu bebê, passou a encarar a vida de forma diferente. Nada a trancava, fazia exatamente tudo o que queria, com ou sem perigo e isto me enlouquecia.

Suas manias eram tantas que eu costumava ambientar-me à elas para não haver contrariedade, embora algumas me fizessem sair do chão. Seguidamente me questiono se o mesmo não acontecerá comigo e a quem recorrerei para ambientar-se à mim.

Eu costumava dizer que ela tinha se resguardado em algum período de guerra, pois a abundância de mantimentos e papel higiênico na sua casa era sem igual.

Almoço? nem pensar um minuto após o meio dia.

Dormir até mais tarde? sem chances! o dia seguinte precisava render e ela estar na boca do fogão às nove horas da manhã.

Café? "Extra-forte minha filha! Se não trouxeres, volta!"

Açúcar? menos do que seis quilos em casa não a deixava satisfeita. E vejamos que ela residia sozinha nos últimos doze anos, exceto nos finais de semana, quando eu integrava a sua casa, e no último ano que passei a residir com ela, por razão triste. Perdí uma irmã e neguei-me a perdê-la. Larguei o meu mundo para esticar o dela, como se isso fosse possível.

Passava dias fazendo anotações para as compras no supermercado e sempre faltava alguma coisa.

Minha mãe era caseira mas, de dentro de casa, estava totalmente ligada com o mundo. Por muito tempo liderou qualquer estatística em resultado de palavras-cruzadas e não raras vezes acordou na madrugada para assistir a uma final de jogo de vôlei. Costumava ligar para duas de suas irmãs (Tias Teresa e Gladis) e assistir à três, apesar da distância. Pura tele-conferência.

Herdou do pai, o Vô Dodô, o amor pela política, deixando-nos, as filhas, sempre boquiabertas. Nos períodos de eleições, costumava ligar para o comitê do seu partido e "exigir" a placa do seu candidato em frente à sua casa, sem qualquer rodeio. E politicava com todos. Posso garantir, sem medo de errar, que sempre angariou um expressivo número de votos para o seu candidato. Onde? por todos os cantos possíveis. Ela politicava mesmo.

Minha mãe tinha mãos de ouro. Fazia crochê e tricô como ninguém. Não precisava de receita escrita. Olhava e aplicava nos seus trabalhos. Na cozinha uma mestra. Era inteligente e, acima de tudo, uma mulher de doação. Doou-se muito e compensou todas as suas manias de forma branda.

Muitas vezes eu a contrariava argumentando que não alimentaria os seus exageros. Ela aquietava-se e, no outro dia, não faltava quem a entendesse e fizesse exatamente o que ela queria.

Amava a praia, mas não chegava perto do mar. Gostava mesmo era de passear no centro de Tramandaí e comprar frutas, verduras e legumes no caminhão do Gringo, além de trocar receitas culinárias com as vizinhas que ela amava.

Gostava de jogar no bicho e, após a sua partida, mais uma vez surpreendeu-me. Esvaziando a sua casa encontrei inúmeros blocos de jogo do bicho já amarelados que ela utilizava para recados. E falando em recados: a sua geladeira era encoberta por eles. Costumava escrever, com uma caligrafia maravilhosa (teve a sorte de ter tido uma excelente educação), bilhetes prá ela mesma do tipo: "Nita, não esqueça de comprar ovos. Fale com a Mercilda amanhã", "Nita, cuidado na área dos fundos. Uma garrafa foi quebrada por lá" e por aí afora.

Era tão fanática pelo seu time (Internacional) que, na primeira vez que passou em frente à Arena do Grêmio virou o rosto e, num tom de desdém falou: “minha filha, prá que tanto alarde se não é tão bonita assim?”

Amava a sua horta e, desde que passei a ficar com ela, costumava exigir que eu plantasse mudas e mudas de pés de alface, brócolis, cebolinha e tempero verde seguidamente. Ensinou-me a plantá-los (e aprendí) e também a colocar as verduras em baldes para distribuição pela vizinhança, por mim obviamente. Eu não a contestava. Não raras vezes me sentí estranha, como se estivesse em outro mundo, mas em pouco tempo tudo passou a ser muito natural.

Teve toda uma tradição religiosa, mas não praticava. Tinha um Deus muito próprio e uma santinha (Santa Rita de Cássia) que ela guardava no fundo do guarda-roupas, de costas, sempre que percebia que o seu pedido estava tardando muito para ser atendido. Costumava emprestar-me um terço da Vó Rosalina toda vez que pressentia que eu não estava bem. De tão antigo, ele é todo emendado com linha de costurar e fosforescente na escuridão. Este foi o único bem que eu exigí prá mim quando ela partiu. Encontra-se dependurado sobre um quadrinho em cima do meu criado-mudo. Uma singela herança material com significado ímpar de sentimento.

Minha mãe tinha medo da morte e, para despistar sempre falava: "eu não penso em morrer" mas, no último ano, sorrateiramente, questionava-me sobre algumas coisas práticas. E foi com praticidade que partiu. Serena? nem tanto. Partiu carente, carente de afetos que ela amou incondicionalmente mas, por outro lado, muitos outros entraram na sua vida com grande habilidade para suprir essas faltas. Minha mãe foi mãe de muitos, vó e bisavó de outros tantos. Meus amigos costumavam dizer que ela era a sogra que qualquer homem gostaria de ter - e foi! e como foi!

Com ela eu aprendí que a gente pode dormir com algum problema muito grave, mas que no próximo dia tudo poderá mudar. Era extremamente ansiosa, mas confiava no sono para alterar qualquer situação. Sempre falava: "nada melhor do que um dia após o outro", que uma horta é sinal de vida, que as violetas devem ficar na janela sob luz indireta e que amor não precisa ser alardeado. Amor se faz!

Meu bebê era demais ...

(crônica publicada no livro PROSA NA VARANDA II - lançamento em 24/07/2014)

Rosalva
Enviado por Rosalva em 27/07/2014
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