Excêntrico por natureza
Minha memória não é das melhores, mas a vida não tem me poupado de lembranças boas que me fizeram rir, crescer e, principalmente, aprender com as pequenas coisas e acontecimentos inusitados. “Pedaços de estrada” tão sutís que muitas vezes deixo de perceber (ou não quero ou mesmo não tenho intenção). Deste pedaço eu não esquecí.
Por vários anos, no início da minha carreira profissional, atuei como secretária executiva em grandes empresas gaúchas. Na primeira, após alguns anos de trabalho, fui convidada por um Diretor - na época considerado um "coringa" por sua genialidade, para secretariá-lo. Resistí por razões diversas: o homem era meio louco, com inteligência ímpar, tinha uma vida muito conturbada - além do trabalho em Porto Alegre, era professor de economia da FEA-USP em São Paulo e, na época, estava finalizando um doutorado. Fui alertada por vários colegas que enlouqueceria nas mãos dele. A resistência não vingou e, em questão de dias, ocupei o cargo ao seu lado. Convivência frenética nos primeiros dias, loucura, termos e atitudes que não me eram familiares. Minha vida "normal", num passe de mágica, se transformou num vendaval. Passei a dedicar-me ao conhecimento de indicadores, estratégia, gráficos, mercado financeiro e, porque não dizer: culinária, uma mistura incompreensível.
Pois esse executivo, de nome Nilton Cano Martin, paulista de São Bernardo do Campo, mesclava absolutamente tudo com maestria. Ao mesmo tempo que reunia-se com o Conselho de Administração da empresa ou com seus Gerentes a fim de traçar metas arrojadíssimas, saia da sua sala e falava-me: por favor "madame" (era assim que ele me chamava), peça ao office-boy que vá ao Mercado Público e compre um quilo de músculo. Eu não sabia o que era músculo! Na primeira vez saí desesperada solicitando "uma luz" junto à uma colega. Sim, músculo é uma carne, especialmente utilizada nas sopas. Ele amava cozinhar e, no decorrer do dia, em meio aos seus inúmeros desafios, costumava pensar no que faria para o jantar.
E assim eu fui acostumando com o seu jeito eclético de ser. Apesar da sua invejada posição no mercado, não a utilizava para expô-la em qualquer situação. Passava a semana normalmente em um apartamento de porte pequeno na Avenida Duque de Caxias, dirigia - e dirigia muito mal - um Passat comprado de um ex-Gerente e, sempre que viajava de carro, costumava parar na beira da estrada para comprar broas, pão caseiro e outras guloseimas que o atraiam. Chegava na empresa como um Papai Noel, distribuindo um pouco de tudo para cada um.
Com ele aprendi:
- a deliciar pão de torresmo, feito por sua mãe em São Bernardo e trazido envolto em um pano de prato dentro da sua bagagem no avião;
- a procurar "ir ao cinema" e não somente assistir filmes em casa. Ele sentenciava que o "clima modifica o filme” e eu tenho essa sensação até hoje;
- a digitar uma tese de doutorado em dois dias em plena véspera e dia de Natal, sem aborrecimento;
- a entender que livro não se empresta. Se alguém pede algum livro seu, saia já para uma livraria, compre-o e presentei o "pedinte". Neste ítem sobre "livro" considero importante citar que boa parte da verba destinada a benefícios para esse grande executivo era totalmente consumida por livros que, na época, ele importava, já que os títulos ainda não eram oferecidos no Brasil. Tinha mais de 3.000 volumes expostos (e lidos) na sua sala;
- e, principalmente, a entender que os pequenos gestos fazem toda a diferença.
Após uma das inúmeras crises que tivemos frente às suas excentricidades, certa manhã cheguei ao trabalho e, em cima da minha mesa estava um pequeno pacote. Nele o livro A ARTE DA GUERRA do Sun Tzu, com a seguinte dedicatória: "De quem é louco na vida para uma artista da paz ... NCM".
Na verdade eu não sabia, até então, o tamanho da minha paz.
(crônica publicada no livro PROSA NA VARANDA II - lançamento em 24/07/2014)