Envelhecer (Patricia Porto)
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© P A T R I K • N E U M A N N |
Estou envelhecendo. Não é uma novidade, venho envelhecendo há tempos, fragmentada em dias, meses, anos; desde do meu nascimento até agora. Farei quarenta e quatro anos daqui a pouquinho e digo sinceramente esperar viver ao menos mais quarenta. Não é uma arrogância não, só vontade de viver mesmo, viver melhor o que for da melhor idade. Tenho algumas amigas que admiro bastante e que já passaram dos sessenta, setenta. Elas escrevem poemas, dançam nos bailes da vida, criam netos, trabalham ativamente, me mostram fotos da minha cidade, lecionam, cuidam de seus gatos e cachorros, plantas, amam, amam, amam... Quero isso pra mim.
Estou envelhecendo. Já troquei de lugar com meu filho na permuta de quem ensina e aprende. É bonito, tão bonito que eu gostaria de xingar um palavrão só para me espantar de presente. Serei certamente uma velha desbocada. A netinha vai dizer “a vovó está assustando meu namorado”. O que fazer? Já terei perdido os sisos. Pra que tanto juízo?
Estou envelhecendo. Mas não estou sozinha. Todo um mundo que trago comigo também vem envelhecendo. Outro dia um amigo me deu umas dicas de viagem, sinal que estamos envelhecendo juntos. Claro que tem esse lado triste da morte, faz parte de envelhecer ver suas referências, seus exemplos partindo. Perdi três, quatro universos de referências no mês do meu aniversário. É para entristecer qualquer um que tem coração. São pedacinhos seus, são minúsculos grãos de sua mesma poeira cósmica. Despedir-se é tarefa das mais difíceis, eu sinto mais que acho. Vou ali na esquina da minha humanidade chorar e volto. E volto mais velha, a velha da vez.
Estou envelhecendo de acordo com minha idade. Sinto mais dores no corpo, e minha natureza notívaga me dá trabalhos para o dia seguinte. Que dia? Ando sonâmbula pelo mundo. Se faço uma noitada, uma raridade, preciso de dias e dias para me restabelecer. Na verdade ando trocando noitadas por desenhos infantis, leituras intermináveis de Ulisses, novela das nove, papo com as amigas regado a café ou vinho, carinhos nos filhos, no meu cachorro, ás vezes um cineminha - fora as arrumações de papéis, gavetas, livros etc. E vou vivendo bem devagar. E é o que realmente me entusiasma, viver devagar, ficando lenta, naquela lentidão de existir do meu tio Inácio, eternamente deitado na rede mascando fumo. Tenho meus dias de rabugice, de ovo virado, que me lembram muito minha tia Marta, reclamando de tudo e todos, esbravejando e esquecendo, esquecendo e esbravejando. Mas acho que estou pendendo mais para tio Inácio, ouvindo mais e mais, falando pouco por pura economia de saliva e aborrecimento.
Estou envelhecendo e as mortes, as quedas fazem parte desse envelhecer. Se tenho medo? Fico borrada só de pensar. Mas sei que no final das contas o medo da vida vai ter sido maior. E o medo dos vivos, claro. Cresci com a morte por perto num lugar e tempo em que se velava o defunto na sala de casa, no quarto, na cama que o viajante dormia.
Por um tempo da minha infância vivi com três velhos e fazia parte da programação mensal ir velar um parente, vizinho, conhecido - que nem precisava ser muito conhecido não. Bastava ter bolacha, um refresco e tia Marta ou tio Inácio me levavam a um desses eventos fúnebres. De curiosa eu ia pra olhar. E divertido era ir com tio Inácio, porque ele bebia e dançava o morto numa animação tão grande que morrer até parecia uma festa. Tia Marta podia ser contratada para as rezas e choradeiras. Chorava por desconhecido, qualquer um que precisasse. Se não tinha gente chorando no velório, ela puxava e até dava ameaça de desmaio. Quando voltava pra casa nem lembrava do ocorrido.
Estou envelhecendo com os meus velhos por dentro de mim e tenho engolido infância a todo momento, talvez faça parte desse paradoxo, o corpo ficando mais duro, a alma se esticando, se espreguiçando, uma ginástica de estar vivo para além. No meu caso, para além do esperado de tanto que enfrentei a vida para não sucumbir. Mas não sou a única nisso de resistência. Somos tantas e tantos, estamos envelhecendo de teimosos e valentes. E um passarinho me disse que vão precisar de bons contadores de histórias lá pro ano de 2035. Tenho preparado meu currículo lattes vivendo esses tecidos da vida, cheios de defeitos de costura, e outros de comportamento, não sei direito. Mas até 2035 ele vai estar prontinho para essas horas cheias, horas de verdadeiro banquete.
Estou envelhecendo agora, nesse momento, é um feito interminável até que se finde. Estou me preparando, pois quero envelhecer de cabeça branca e erguida. Não sou melhor nem pior que ninguém, por isso espero envelhecer com dignidade e dignamente. As bagagens estou diminuindo, pesos também. Estou rindo cada vez mais, tenho rugas novas em lugares inimagináveis antes e aprendo a conviver com elas do jeito que aparecem. O tempo está ai e estou indo encontrá-lo de cara limpa, braços abertos, sentimentos avulsos, com meu lado cafona, sentimentaloide, escrevendo cartas de amor ridículas.
É. Estou envelhecendo e estou feliz. Sinto-me incompleta de uma maneira muito peculiar e prosaica. Admito minhas imperfeições, cultivo incertezas e aprendo coisas novas com os mais jovens, as crianças, e faço isso sempre com um prazer indescritível. Consumo menos, sou mais seletiva nas palavras, pouso o olhar mais vezes naqueles que eu amo e me demoro, me demoro, me demoro...
Patricia Porto