Lábios Vermelhos

Lábios Vermelhos

maria da graça almeida

Sobre a mesa, a régua longa, cor de canela, números grandes, brancos. Aterrorizados, meus olhos percorriam-na de ponta à ponta. Muitas vezes seu uso era indevido. Não recaía diretamente sobre ninguém, mas os golpes com ela desferidos, mesmo esfolando apenas mesas e cadeiras, chegavam a ser contundentes, porém, combinavam com a dona da voz seca e dura que a regia

-Aqui! Coloca o lápis aqui! Ouviu bem? Aqui! Aqui!

O lápis mudava de lado. Passava de uma mãozinha trêmula para a outra ainda mais. Desavisado, o menino permitia que seu queixo pontudo denunciasse-lhe o pânico. Sentia-se iminente um soluço.

Não chore, não chore - em pensamento, eu lhe pedia-.

Todas as manhãs, assim que eu chegava, de pronto examinava a sala conferindo sua presença. Se visse o corpinho franzino já a postos, um suspiro de alívio saia-me do peito: - Graças a Deus! Tomara que ele agüente. Tomara que ela desista. Ele, frágil, indefeso; ela, obstinada, persistente. Incansável! Ele pequeno, miúdo; ela, enorme, gigante. Batalha desigual.

Um dia, numa de suas investidas, ela torceu-lhe a orelha. Olhos arregalados, ele balbuciava algo indecifrável. Eu olhava dela o batom vermelho, laranja, amarelo, branco...Preto...tudo escuro. Bum! Um baque seco. Era minha cabeça que sobre a carteira despencara. Um súbito desfalecimento. O galo cantou.

- Essa menina não come nada, doutor! -Minha mãe preocupada. E o batom vermelho mudando de cor voltava à minha lembrança e meus ouvidos tornavam a captar os sons desconexos do menino.

- Veja, doutor, de repente, fica assim...branca! -Minha mãe insistia-.

Mais uns dias e o vi no pátio, no centro de um roda de moleques insolentes que se riam da sua gagueira. Antes ele falava lisinho, agora só aos solavancos. Emudecida, não tive coragem de assistir ao desfecho da crueldade. Tranquei-me no banheiro. E lá fiquei esquecida num canto úmido.

Será que amanhã ele virá? Veio. Uni meus dedos. Um gesto habitual de agradecimento aos céus. Mas os lábios vermelhos não desistiam. Moviam-se com rispidez, gritavam esbravejavam, cada vez mais alto, mais forte e insistiam na obrigação do pequeno.

E o lápis continuava a dança, de um lado por outro, um lado pro outro, de um lado pro outro...até que... pá! Um ruído seco! O rostinho do menino virado pro lado, na bochecha, a marca dos dedos longos e finos. Meu coração pulsava nos ouvidos.

Comecei a ver tudo com uma lentidão exagerada. E dolorida. O menino levantou-se, vagarosamente, subiu na carteira, olhou para todos e bradou com todas as força de um bravo e ultrajado soldado:

- Vai bater na tua filha e passar batom no teu...- a derradeira palavra, engoliu, pálido! Ficara assustado com a sonoridade de sua reação e a ausência momentânea da gagueira -. Solidária, e consciente do que viria depois - não desfaleci – tal qual ele, subi na carteira e tão alto quanto, gritei indignada:

- Vai mesmo, Dona Arlete! Vai, sim! A senhora ainda não sabe que o José Ciro é canhoto?!

Após a tentativa do primeiro ensinamento, pressenti qual seria minha profissão.

maria da graça almeida
Enviado por maria da graça almeida em 22/02/2005
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