Sem Palavras (I)

Hoje vivi uma página de um dos mais intensos capítulos de minha vida. Eu gostaria, se o(a) caríssimo(a) leitor(a) me permitisse, passar a limpo um pouco de minha história. Por ser uma crônica, quiçá fique meio estranho ela ter mais de duas páginas (tamanho que eu imagino que venha a ter, dada a quantidade de coisas que tenho a dizer).

Então temos um trato, leitor(a)? Negócio fechado?

Em 2007 eu precisei inscrever-me num curso de complementação pedagógica, de modo a garantir minha atuação como professor na rede estadual. Aquele curso mudaria completamente a pessoa que eu era. O primeiro livro que peguei para ler, que me levou a resolver escrever e me fez decidir comprar livros e mais livros (alguns eu ganhei, sim, mas tenho investido, ao longo de sete anos, o que já soma uma pequena fortuna) foi "O que é comunicação", de J. Diaz Bordenave (1996). Por meio dele eu descobri uma "Pragmática da comunicação humana", que, por seu turno, me levou a procurar por Wittgenstein e segue-se, daí, uma longa história até hoje... Por essa razão, refiro-me ao livro de Bordenave como o "Pai de Todos".

Os carteiros que atendem a região onde moro já acostumaram a entregar todos esses livros que tenho comprado. Na ocasião de atendê-los sempre conversarmos sobre estudos, sobre livros. Quarta-feira passada eu aguardava por um livro que tem uma história para contar. Ele veio um pouco mais tarde, porque o vendedor do sebo dissera-me, por e-mail, que precisou solicitar esse exemplar à editora, uma vez que o outro que ele tinha em loja apresentava algumas falhas. "Nas malhas de letra", de Silviano Santiago. Decidi pela sua compra porque um certo capítulo dele me interessou: "O narrador pós-moderno". Como tenho estudado o assunto (um curso em que tentei ingressar como aluno especial trata exatamente da relação entre experiência e narrativa na contemporaneidade), ainda que em linhas gerais (nesse primeiro momento eu tenho me limitado a construir o acervo para, mais tarde, dedicar-me à leitura do mesmo), achei por bem adquirir essa publicação.

Eu conheço esse carteiro que atende a rua em que moro há quase duas décadas. Um cara decente ele.

Retornando àquela quarta-feira, bem, peguei com ele o livro na rua. Assinei o papel de confirmação de entrega e vim para a casa.

Hoje, ao receber mais dois títulos (deta vez sobre Maio de 1968), o carteiro me disse: "Você é um cara de sorte". Disse a ele que não entendi. Daí ele me explicou que, na quarta-feira ele havia sido assaltado, perto da esquina da rua de casa. Fiquei pasmo. "O cara levou a bolsa, Wellington, com tudo o que tinha dentro." "Você é mesmo um cara de sorte." Não me lembrou se foram essas suas últimas palavras, mas lembro-me, bem, de seu semblante sorridente, devido a esse flagrante da vida real. Dissera algo -- talvez o "você é mesmo um cara de sorte" -- e, após esse sorriso que foi acompanhado de um silêncio incomum (nesse momento eu presenciei vários anos num segundo ou dois, algo como se minha vida de leitor, de escritor e de cidadão tivessem presenciado o maior filme que já vi até hoje).

Não sei se poderei reescrever isso -- eu até queria, mas não consigo, não por ora --, essa crônica tão grande. Mas disso eu sei: seu sorriso ficou estampado na Eternidade. Parecia um filme intenso, daqueles típicos de grande elenco, que marcam a vida da gente. Cena que foi adquirindo peso maior, quando, ao se despedir, desceu a rua, apressado.

Eu temi por ele. Logo o carteiro? Logo ele, a quem conheço há quase vinte anos, quase ser morto por um zero à esquerda atrás de uma bolsa de carteiro? Logo o carteiro que atende a região onde moro há pouco mais de vinte anos?

Meu amigo, tenho sorte, sim. Não tanto pelo livro. Mas por poder estar vendo você aqui de novo. Sem nenhum arranhão.

Caríssimo, eu não tinha dúvidas de que teria que escrever essa crônica, tamanha a emoção, o espanto e mesmo o medo que senti por você.

Meu amigo... A cena de teu semblante sorrindo como quem não acredita ter passado por situação tão incomum, seguida pelos teus passos apressados, descendo a rua... Você marcou esse dia, Amigo. Você escreveu a essência dessa crônica. Eu só apareci aqui para agradecer por você estar vivo e bem. E para trazer esse relato -- talvez impossível de ser traduzido em palavras, haja vista que foi uma experiência inédita -- até o público leitor desse nosso Recanto das Letras.

E eu gostaria de acrescentar algumas palavras a mais. Tentando sintetizar tudo o que eu não consegui dizer até aqui, sinto-me preso nas malhas da letra (talvez por isso eu não tenha conseguido uma escrita mais "maleável"). Mas tal fato não me impede de pensar que entre o leitor e o escritor há, seguramente, o papel do carteiro. Alguém com uma função indispensável: manter a sociedade informada. Esse mensageiro cuja ausência implicaria num caos social, merece mais atenção e respeito de todos nós.

Amigo, por questões de segurança (e ética) não me sinto bem para dizer teu nome nesta crônica. Mas tenha certeza de que teu nome é importante para toda a comunicação humana. O que você me disse que lhe ocorreu me fez prestar mais atenção em teu papel como co-autor no livro da vida. Difícil função essa. Ainda mais quando se está sujeito às intempéries, ao trânsito, às emboscadas que, eventualmente, os esperam nessas encruzilhadas da vida.

P.S.

Eu queria ter dito mais, sabe? Mas o que? Será que os meus leitores entenderão o que estou sentindo? Acho que o que eu escrevi aqui não dá conta de explicar tudo -- se é que explica algo. Bem, já que eu não me sinto tão capaz de relatar mais nada, talvez o meu leitor possa, com toda a sua paciência e compreensão, fazer um trabalho bem melhor do que eu.