Cortes suínos

Sonho que trabalho num abatedouro que emprega mais de mil pessoas, a maioria pobre. Minha tarefa o dia inteiro é separar focinho, pezinho e orelha de porco dos outros cortes, que passam por mim numa esteira rolante. À minha direita, em duas caixas de plástico, jogo focinhos e orelhas; à esquerda, noutra caixa, pezinhos. Os que não prestam, por estarem deformados ou com hematomas, jogo num buraco no chão, que eu não sei onde vai dar. Nunca vi abater um porco. Nem cortar. Meu trabalho é só separar. Oito horas por dia, separar: focinho, pezinho e orelha.

Comigo na esteira estão alguns colegas do bairro, companheiros de boteco e zona, e também algumas mulheres que eu conheço, a maioria só de vista.

Estou separando focinhos, pezinhos e orelhas há duas horas quando, de repente, vejo se aproximar de mim pela esteira um nariz humano, branco, grande, de narinas cabeludas, que logo reconheço ser do meu colega Jurandir. Inclino meu corpo para frente, viro a cabeça e vejo que Jurandir realmente está sem o nariz, mas continua trabalhando normalmente, separando seus cortes como se nada tivesse acontecido. O nariz passa por mim, meu colega da frente o pega e joga dentro de uma caixa, junto com seus cortes de costelinha. Acho isso muito estranho, mas continuo meu trabalho.

Meia hora depois vejo se aproximar de mim uma mão de mulher, decepada um pouco acima do punho, toda enrugada, encardida, com esmalte vermelho barato descascando nas unhas, e imediatamente reconheço-a como sendo da minha colega Rosa, que trabalha na esteira um pouco antes de mim. Olho para a colega e vejo que ela realmente está sem a mão esquerda, mas continua separando seus cortes com a direita sem se preocupar, com a mesma rapidez e destreza de sempre. Deixo passar a mão, que vai parar numa das caixas do meu colega da frente.

Cinco minutos depois vejo passar um pé de homem, todo rachado no calcanhar, com terra vermelha incrustada tão profundamente nas trincas que não deve sair nem com lixa de pedreiro. Não o reconheço, mas logo descubro ser do Josias, que de repente aparece se apoiando numa muleta.

E seguem passando narizes, mãos, pés, joelhos, orelhas, canelas, coxas, troncos, braços, pescoços e ombros de homens e mulheres pobres, empregados do abatedouro, sofredores como eu, que ao não conseguirem mais ficar em pé por falta de pés, ou separar os cortes por falta de mãos, são substituídos por outros empregados, que também vão perdendo suas partes até serem substituídos, e assim por diante. De todos ali parece que só eu e meu colega da frente ficamos intactos, não sei por que razão.

Aí começam a aparecer cortes diferentes, mais nobres: mãos sedosas e macias, punhos com relógios de marca, pés sem rachaduras, narizes tratados, sem cravos e espinhas, etc., que, acredito, pertencem aos mais graúdos do abatedouro – mas não aos donos, que moram nos Estados Unidos –, o que se confirma logo que vejo passar um tronco com um crachá que diz: Dr. Rodrigues, gerente geral. E aos poucos, em partes, passam também gerentes de produção, de marketing, de venda, de recursos humanos, etc., cujos cortes são separados e jogados nas caixas pelo meu colega, junto com os outros.

De repente sinto uma picada no ombro, um leve ardor, quase nada, e meu braço cai na esteira. Meu colega da frente perde uma orelha e continua seu trabalho. Eu também continuo o meu, e penso comigo: “Isso aqui não tem o menor sentido... Essa vida, esse sofrimento todo... Para quê?... Mas é assim... Pelo menos passa rápido”. E acordo.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 24/07/2014
Código do texto: T4895014
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