LEMBRANÇA XVI
Lembro-me perfeitamente do período em que o Porto do Recife era local super movimentado.
Nessa época Pernambuco era líder mundial na produção de açúcar de cana e, como o principal meio de transporte era o navio, o porto vivia fervilhando com embarcações de todos os tamanhos, desde as pequeninas catraias até transatlânticos enormes que levavam o produto para os portos das Américas e dos demais continentes ao redor do mundo.
O movimento do bairro era justificado também pela presença do Comando do Terceiro Distrito Naval da Marinha do Brasil, da Capitania dos Portos, da Delegacia Fiscal do Ministério da Fazenda, da Bolsa de Valores, da Associação Comercial e Junta Comercial do Estado de Pernambuco, muitas agências bancárias nacionais e internacionais, como o City Bank, Bank of London, agência dos Correios e da Western Telegraph Company, assim como os escritórios das sucursais de muitas seguradoras, indústrias e usinas, da Aliança Para o Progresso que foi o balcão internacional de barganha, criado por John F. Kennedy, (o esperto Presidente dos Estados Unidos) para trocar com os outros países, o excesso da produção agrícola, por produtos valiosos e de interesse deles. Com o Brasil, a troca principal foi por areia monazítica da Praia de Guarapari/ES, um dos minerais estratégicos utilizado na corrida espacial.
Tinha também o Moinho Recife, a Fábrica de Biscoitos Pilar e o parque de tancagem das empresas de petróleo e do IAA (Instituto do Açúcar e do Álcool) muitas casas comerciais, principalmente de ferragens e a centenária Livraria Universal.
Quase todas as linhas de ônibus da cidade faziam terminal no Bairro do Recife, disputando espaço com os trens cargueiros, caminhões FNM, Volvo Ford e Chevrolet que transportavam as mercadorias dos armazéns auxiliares para o cais.
Além dos muitos restaurantes, bares e lanchonetes havia os ambulantes que vendiam de tudo, até peixe frito na hora, e logicamente, por ser um bairro ligado ao porto, havia a zona do baixo meretrício com suas pensões e figuras folclóricas como Lolita.
- Quem não conhece Lolita, não conhece o Recife – era o seu slogan.
Lolita era um fresco velho que trabalhava numa das pensões da Rua da Guia e toda noite, travestido de mulher, desfilava pelas ruas do bairro às voltas com os marinheiros estrangeiros, com os quais barganhava cigarros de maconha.
Muitas vezes, por causa da droga e das farras homéricas que acabavam quase sempre em briga séria, daquelas com faca peixeira ou navalha e gente sendo levada para ser costurada no Hospital do Pronto Socorro, Lolita era levado para a Delegacia de Polícia do bairro, mas para levá-lo, eram necessárias duas guarnições porque ele além da briga comum, dessas que todo mundo sabe, usava golpes do que se convencionou chamar de “artes marciais” e uma só guarnição não era páreo para ele.
Durante a safra, quando as usinas e engenhos transformavam os canaviais em açúcar, o movimento era enorme e enquanto aguardava o embarque, o açúcar ensacado ficava empilhado nos armazéns do cais do porto e em outros espalhados pelas do bairro e dos bairros vizinhos de Santo Antônio e São José, porque os trens e as barcas teriam que voltar rapidamente para as usinas.
As barcas de madeira, grandalhonas, movidas à vela, depois de passarem pela Ponte Giratória*, que fica exatamente sobre a foz do Rio Capibaribe, subiam o rio para atracarem ou no Cais da Alfândega, ou em frente ao Grande Hotel ou no ancoradouro construído onde originalmente havia a Praia de Santa Rita.
Esses armazéns fora da linha do cais principal não dispunham de guindastes nem de esteiras rolantes por isso todo o serviço tinha que ser executado pelos estivadores que falavam alto e riam pelas gozações que faziam com os colegas de profissão enquanto, tal como formigas cortadeiras, em fila indiana, entravam e saíam dos armazéns e das barcas, por cima de duas pranchas de madeira que as ligavam ao cais, carregando nas cabeças as sacas de estopa contendo o açúcar demerara que vazava pelos buracos da trama e se misturava ao suor, fazendo com que os torsos nus daqueles homens brilhassem ao refletir a luz do sol.
A partir do momento em que eram atracados os grandes navios, o movimento do porto não parava até que eles estivessem totalmente carregados.
Então aquelas sacas que estavam guardadas fora do porto, eram trazidas pelos caminhões para os armazéns do cais, eram amarradas em lingadas e depositadas no convés do navio pelos guindastes.
O açúcar era despejado a granel dentro dos porões e os sacos vazios retornavam para as usinas e engenhos para serem reutilizados até que toda a produção tivesse sido embarcada.
Eram muitas as profissões envolvidas nessas operações com o vai e vem sem fim dos Despachantes Aduaneiros e funcionários do porto, tanto da capatazia como os autônomos, práticos da barra, estivadores, consertadores, conferentes, etc.
Mas o tempo passou...
Pernambuco deixou de ser o maior produtor mundial de açúcar de cana;
O serviço braçal cedeu lugar à mecanização;
Os armazéns perderam a importância;
A informática substituiu os Despachantes Aduaneiros;
A política brasileira priorizou o transporte rodoviário e extinguiu a navegação de cabotagem, o Lloyd Brasileiro e a Rede Ferroviária Federal;
As barcas desapareceram;
A Ponte Giratória, por falta de uso, enferrujou e foi substituída por outra feita de concreto que recebeu o nome de Ponte 12 de setembro, mas eu posso garantir que são raríssimos os Pernambucanos que sabem esse nome, porque apesar de fixa, todo mundo só se refere a ela chamando-a de Ponte Giratória;
A Prefeitura mandou aterrar o Cais de Santa Rita e construiu um terminal para ônibus urbano do transporte coletivo;
Criaram o Porto de Suape e o velho Porto do Recife murchou;
As pensões das “Mulheres Públicas” deixaram de existir e os prédios em franca deterioração pela ação do tempo e pela falta de manutenção, mais parecem casarões mal assombrados, habitados apenas pelos fantasmas dos antigos moradores e por pombos;
Os bares e boates que fervilhavam de vida noturna, perderam a importância pela falta de frequentadores e as ruas, hoje desertas e mal iluminadas, são campo de ação de marginais, traficantes e usuários de drogas;
O Comando do Terceiro Distrito Naval da Marinha do Brasil foi transferido para Natal/RN;
A Bolsa de Valores fechou, como as dos demais Estados da Federação, e os papéis ali negociados foram transferidos para a BOVESPA;
A Associação Comercial perdeu importância e também murchou;
A Junta Comercial do Estado de Pernambuco (JUCEPE) mudou para um casarão no bairro da Boa Vista, na mesma praça onde ficam a Câmara de Vereadores e a Faculdade de Direito da UFPE;
A Western Telegraph Company foi-se embora;
Os muitos bancos nacionais fundiram-se em bem poucos e as agências foram fechadas pelo advento da informática e do autoatendimento;
Quase a totalidade dos escritórios, das lojas e a Livraria Universal deixaram de existir...
Foram várias as ações da Prefeitura para revitalização do bairro, passaram a chamá-lo de “Recife Antigo”, mas até agora nada deu certo porque o Bairro do Recife hoje é, apenas, uma fotografia desbotada do que foi e, do esplendor de outrora, só resta o som dos sinos da Catedral da Madre de Deus...
GLOSSÁRIO:
Catraia = Barco pequeno de fundo chato, confeccionado de madeira, útil no transporte de pessoas entre a praia e os barcos pesqueiros; também utilizada nas manobras de atracação de navios.
*) 12 de setembro de 1918 foi a data da inauguração oficial das reformas do porto do Recife, por isso deram esse nome à ponte de concreto que substituiu a Ponte Giratória.