MORREU XYCO THEOPHILO
A amizade, esse tipo de relação humana que pressupõe recíproco conhecimento, lealdade e afeição, pode originar-se no instinto de sobrevivência da espécie. Acredito nisso porque tive e tenho alguns amigos que me mantém vivo. Xyco Theóphilo foi um deles. Não fui certamente “seu melhor amigo”, um termo ambíguo, pois acredito apenas num tipo de amizade; nem melhor, muito menos pior. Entretanto, ele sim foi meu melhor amigo.
Na falta de melhor texto para expressar meu sentimento relativo à morte do Xyco, fui buscar ajuda nos livros; em alguns autores. Bertrand Russel em “A conquista da Felicidade”, numa tradução livre, diz que “se nos fosse dado o poder mágico de ler na mente uns dos outros, o primeiro efeito seria sem dúvida o fim de todas as amizades." Não creio que o Xyco tivesse esse poder mágico, mas, com toda certeza, se tivesse compreenderia e manteria cada uma das amizades, mesmo que fosse a distância por sábia precaução, pois sua generosidade não permitiria ter outro sentimento; não trocaria por ódio, ressentimento.
Mesmo para com aqueles que lhe negaram ajuda, que não aceitaram suas recomendações e pareceres profissionais; suas “sugestões criativas”. Nem mesmo aos que não lhe pagaram por seus serviços de qualidade em detrimento de amadorismos baratos e ineficazes.
Li num jornal que Xyco foi “um ícone da propaganda cearense”. Não foi. Se usaram ícone como metáfora para “alguém importante” erraram; talvez tenham seguido uma convenção popular amplamente aceita. Nesse caso ele foi muito além disso com sua cadeira de rodas, um obstáculo maior, muito maior, do que os que encontrava pela frente.Degraus,calçadas esburacadas ou a falta delas; idiotas caminhantes estacionando seus carros nas vagas dos cadeirantes, ajudantes indispostos, veículo especial,motorista,cuidadores que pudessem e que quisessem transportar seu corpo de pernas inertes para a cadeira de rodas depois de ter que montá-la para acomodá-lo.
Xyco superou tudo isso – e quem sabe lá o que mais – com uma alegria e uma disposição até seu último dia de vida. Nunca se entregou; jamais o ouvi reclamar. Ao contrário ele ouvia minhas reclamações, minhas críticas, minhas descrenças, como um monge sob rodas.
Certa vez, quando entrei na sala dele, contornei sua enorme mesa sempre bagunçada, abracei sua cabeça e dei-lhe um beijo na testa, como sempre fazia. Não por comiseração ou outra estultice qualquer, como poderia parecer, mas sim porque eu gostava de fazer isso.
Mas ele estava com outra pessoa tratando de negócios ou sei lá do que. Desculpei-me pela invasão e logo fui saindo de fininho quando a tal pessoa disse: “vocês devem se gostar muito! Parecem irmãos!” Respondi que não; era apenas viadagem. E saí ouvindo as gargalhadas do Xyco.
Não, a propaganda cearense não perdeu um ícone. Perdeu sim um de seus grandes publicitários, que a ela deu relevância, inclusive na formação de outros profissionais. Ícones são outros já que muitos deles se acham como tal; são os tais e assim continuarão até seu último dia com o mesmo layout e o mesmo texto varejista de ofertas, imobiliário paradisíaco e institucional de elogios; enquanto os estagiários farão anúncios e outras “peças de propaganda” por um preço bem mais em conta. Perderam Xyco aqueles que o amavam, respeitavam e o admiravam.
Xyco tinha defeitos, seguramente. Não sua paraplegia, que era apenas uma condição. Falo de comportamentos, pensares, agires...imperfeitos porque humanos e que certamente foram banidos e esmagados por suas qualidades.Não falo de virtudes pois aprendi com Nietzsche que o que o mundo denomina virtude não é usualmente senão um fantasma formado por nossas paixões, ao qual se confere um nome honesto para fazer impunemente o que se quer.
Para mim Xyco acabou. Fica, porém, profunda e intimamente marcado em mim o que ele foi, fez e a lembrança dele. Essa sim a única possibilidade de eternidade, uma condição que não é dele, mas minha e por todo o tempo enquanto eu também não acabar. E o que é mais significante: ele sabia disso.