Reencarnação

OBS.: A folha do texto original foi amassada, tente imaginá-la ao ler o texto.

A folha gritava incrédula, suplicava por sua vida, tão ávida e deslumbrante, agora transformada em uma planificação nua e vazia. Pálida e marcada apenas por linhas paralelamente dispostas em seu centro, sua única identificação passou a ser a marca da empresa que a trucidara e a colocara naquela situação.

Sentia-se perdida e faltava-lhe o ciclo da vida percorrendo seu interior. Estava absorta, tão limpa e tão suja. Podia ouvir ainda os ruídos profundos e aterrorizantes daquela máquina mortífera. Lembrava-se apenas de seu corpo estirado ao chão, como um banquete perfeito oferecido ao ritual de putrefação.

Ela gritava, absurdamente descontrolada gritava. Pedia por vida, por uma razão de existência que substituísse a que foi arrancada de si. Entre súplicas desesperadas, permanecia imóvel, irritantemente plana e pálida.

Meu inconsciente ouviu seu martírio e conduziu-me em sua direção. Delicadamente peguei-a e dei-lhe o que tanto pedia... Vida. Já não me parecia mais tão pálida e suas linhas haviam perdido a irritante persistência paralela, pois algo mais chamava sua atenção.

A partir de meus traços mal definidos, entre rabiscos e borrões, comecei a preenchê-la. Algo diferente aflora em sua superfície, já não são mais os galhos cheios de folhas de um verde intenso e ofuscante, nem suas lindas flores enchendo-a de cor e vida; já não são mais as mutilações em seu tronco, cúmplices de corações apaixonados, nem os seres que a habitavam tomando-a por abrigo e proteção; mas palavras. Palavras unidas e reluzentes, ansiosamente prontas para serem lidas, devolvendo a serenidade da folha que gritava.

Contudo, a folha grita. Agora parece gritar mais alto. Ainda insatisfeita, ainda chorosa, pede para que volte a ter as rugas de seu espesso tronco, um desejo incontrolável. Desculpe-me leitor por esta leitura tão conturbada, mas não pude deixar de atendê-la vendo-a se desmanchar em prantos e agora cesso sua angústia, preciso amassá-la. Pronto! Já não grita mais, já não me pede coisa alguma. Saciei seu íntimo, interrompi sua angústia e acalentei sua inquietação, agora sim posso dormir. A folha... Já não grita mais!

gili
Enviado por gili em 16/05/2007
Código do texto: T489071
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