Celebrações sabáticas
CELEBRAÇÕES SABÁTICAS
(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 21.07.14)
Jovens, ambos. Ele branco, ela negra. O filhinho, de cinco anos, mulato de cabelos lisos, brinca com o carrinho do supermercado, empurrando-o para a frente, até atingir de leve a mãe, e para trás, até bater na perna do cliente na fila. O pai pega o menino, coloca-o no carrinho vazio - as compras na esteira do caixa - e faz uma brincadeira com ele, sorrindo; não vê, na atitude do filho, agressões à mãe ou ao desconhecido. O garoto se estica para pegar algo, a mãe procura o cartão de crédito para pagar as compras, o pai agarra o filho e o abraça. Em seguida, coloca-o de pé no chão, para lá dos limites do caixa.
- Olhem, eles já devem estar em Santo Amaro! - um outro casal, sem filhos, passa com as compras ensacadas num carrinho e fala para os dois.
É sábado, é início de tarde e ali da imensa vitrina do supermercado na Costeira do Pirajubaé divisa-se um cenário deslumbrante e ensolarado, de topo para o mar da Baía Sul, para as montanhas no Continente, para o céu distante e tão próximo. Em torno, os morros revestem-se de verde, no meio do qual destacam-se pelas copas fechadas e compridas, dispostas na vertical, alguns eucaliptos; pelos caules pálidos e retos, inflexíveis, distinguem-se muitos garapuvus que no topo se abrem para os lados, loucos para que chegue a primavera a fim de se cobrirem de flores amarelas, amarelando toda a Ilha.
Cores. Um sábado pintado em "technicolor" com tecnologia natural. Sem pagamento de "royalties".
Então é que se revela, quando a muito custo trazemos de volta nosso olhar para o interior da loja, que pai e filho vestem camisetas idênticas, com um grafismo circundado pela frase que me deixa horrorizado: "Desenvolvendo o caráter de Cristo".
- Meu Deus! Dois mil anos já e esse senhor ainda não tem o caráter formado? - pensei quase em voz alta, e rezo aos céus para que efetivamente ninguém me tenha ouvido.
Escuto que os quatro adultos são da Assembleia de Deus, que se dirigem para um evento piedoso em Santo Amaro da Imperatriz e que seu objetivo é desenvolver o caráter de Cristo nas crianças e nos jovens da sua fé.
Um dia único
Todos os dias são únicos, é verdade. Não se registrou na História, até hoje, nenhum caso em que uma determinada data haja se repetido em momentos distintos. Isto é ficção científica, não a realidade rasteira do nosso cotidiano.
No entanto, o sábado passado revestiu-se daquelas características que fazem valer a pena vivê-lo cada minuto: o frio finalmente se apresentou, o céu andou claro, o ar mostrou-se fino e transparente, o azul impecável cobriu nossos ócios, uma lancha singra a Baía Sul em direção à Ponte Hercílio Luz (ao que resta da ponte), o mar espreguiçava-se espelhado e convidativo. Desenhando o horizonte além da Baía, o perfil senoidal do Cambirela e o serrilhado da Serra Geral vestiam-se de tons azulados, em contraste com o verde exuberante dos morros na cidade.
Um dia também de 50 anos.
50 anos de um dia
Manoel Osório tem muitos amigos (o que não o impede de cultivar inúmeros desafetos também). Amigos de todas as idades. Um destes o convidou para uma celebração na adega subterrânea de sofisticada loja de vinhos da Ilha. Foi no mesmo sábado de tantas cores. Um sábado coroado por ótima comida, maravilhoso espumante, excelente vinho e gente que só encontra em festas de família.
Tratava-se da comemoração das bodas de ouro dos amigos Ana e João Camargo. De presente da Ana, o João ganhou a autorização para fazer uma viagem com um filho e dois netos cumprindo um roteiro inusitado pela fronteira oeste do Rio Grande do Sul. Partem nesta segunda-feira. Voraz colecionador de histórias, Manoel Osório já reservou cadeira para ouvir os relatos do périplo.
De presente, a Ana quis duas semanas de descanso.
--
Amilcar Neves é escritor com oito livros de ficção publicados. A partir de 26 de agosto de 2013 integra o Conselho Estadual de Cultura, na vaga destinada à Academia Catarinense de Letras, onde ocupa a Cadeira nº 32.
(...) aquele 1965 em que éramos jovens, românticos e puros. Incontaminadamente puros. (...) Havia uma visão do coletivo, que hoje se perdeu, como também se extraviou (ou até soa ridícula) aquele ideia de "salvar a pátria", de interessar-se pelos problemas do País e do mundo porque eles habitavam nossa consciência.
Flávio Tavares, "Memórias do Esquecimento"