Há quem se queixe das noites de insônias que vez por outra nos acomete, e, segundo os médicos, ela pode causar prejuízos ao raciocínio e concentração. No meu caso não posso dizer o mesmo. É na insônia que produzo intelectualmente mais.Só acho ruim quando o sono chega pesado lá para as cinco da manhã e eu esqueço o que tinha pensado. Mas, a depender da situação, varo a noite, porque na insônia qualquer travesseiro macio vira tijolo e minha imaginação é notívaga. Crio textos, personagens, poemas, frases, ou planejo algo. E assim, de olhos no teto, amanheço e vou para o computador fazer valer o que me manteve acesa. Quando é um poema curto dá para dormir depois, mas nem sempre é assim. Vai depender dos processos mentais em que um assunto puxa o outro. Se já existe uma história em andamento a coisa pega e até parece que entidades baixam, vindas não sei de onde, querendo mudar o enredo. Outras vezes surge uma história nova, disparada por uma lembrança ou observação que fiz em relação a algo. Esta noite, por exemplo, sem mais nem menos, me veio a lembrança de Patu. Uma senhora que tinha uma quitanda no bairro onde morei desde a infância. Só havia esse estabelecimento, na esquina de casa, num pequeno terreno da prefeitura, que vendia temperos, coco, azeite de dendê etc. Todos do bairro costumavam comprar na quitanda de Patu uma vez que na época, não havia supermercados nem grandes armazéns. Mas, por que lembrei de Patu? Simplesmente porque estava refletindo sobre essa discriminação social de hoje, assistindo a um programa de televisão. Foi o suficiente para que retornasse à minha infância e perceber, com o olhar de hoje, que naquela época as classes sociais conviviam harmoniosamente uns com os outros fosse qual fosse o bairro. Se o bairro era de classe média ou alta não importava, pois sempre tinha na esquina não só uma quitanda, mas também o alfaiate que morava no beco mais adiante, a costureira, o sapateiro, que prestavam os mais valiosos serviços, antes das mercadorias descartáveis de hoje. Eram pessoas que muitas vezes encontrávamos em ponto de ônibus e batíamos um bom papo enquanto esperávamos a chegada do motorista do ônibus que foi beber uma água, às vezes em casa de uma moradora. Sim, porque não havia esses prédios de apartamentos altos nem condomínios fechados, Eram casas sem muros. Me diverti na insônia lembrando de Patu, relembrando a cena quando minha mãe me pedia para comprar uns tomates que estavam faltando ou outro tempero qualquer . Patu não pesava nada, só perguntava “quantos quer mia fia”? E o preço dependia do dia, ou se ela achava que o freguês podia pagar mais, ou menos. O lugar não era dos mais limpos dada as condições do estabelecimento. Muitas vezes ela aparecia na porta lavando um penico, numa torneira em frente à quitanda, e dizia: já, já lhe atendo. Ela tomava umas pingas, vez por outra, e, certa feita por conta disso, fez xixi em pé meio grogue perto de mim e o respingo caiu no meu sapato na porta da quitanda. Mas ninguém se importava com isso e até a convidavam para os aniversários das crianças. Lembro que fui a um caruru, onde ela foi convidada, e lá dançou e cantou uma música de Cosme e Damião. Na insônia até lembrei a letra: “Onde vai dois,dois eu vou lavar, lá no poço um, lá no areiá”. E todos caíam na dança. Nessa minha insônia divaguei por todo o bairro e, lembrei-me que a maioria dos prestadores de serviços tinha apelido. Ou melhor, nem sabíamos direito o nome deles. Além de Patu, tinha Orelhinha, o cabeleireiro masculino; dona Fiúta do cuscuz, muito risonha apesar de não ter os dois dentes da frente; Dadinha costureira, mas que só fazia consertos; Jaime Feião, que chamávamos para encerar a casa com cera parquetina. A casa dele era conhecida como a casa dos feiões. Mas as irmãs deles eram funcionárias públicas. Em meio a todos eles tínhamos vizinhos de várias classes sociais, advogados, engenheiros, professoras, médicos, que, claro não faziam a menor discriminação. Ninguém tinha medo do mais humilde, fosse ele branco ou negro eram, a princípio, cidadãos. Pronto, já escrevi.Espero que tenham se divertido com minha insônia.
Darcy Brito
Enviado por Darcy Brito em 19/07/2014
Reeditado em 22/04/2015
Código do texto: T4888528
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