Boneca de Verdade
Ainda ontem era novembro de 1967. O país sufocava aos dedos da ditadura. Lá na roça, na casa da avó materna, nascia a primogênita da família: face rosada e dois enormes olhos verdes. Aos tios e tias, ainda crianças, foi dito na volta da escola que uma cegonha havia entregue, em um lençol amarrado ao bico, uma boneca de verdade. A parteira se orgulhava do nascimento. Era mais um sucesso para somar à sua longa lista.
Os dias passaram rápido com a novidade. As visitas chegavam de “carrinho” (charrete/jardineira) ou mesmo a pé. Dava pra ver, ao longe, o tecido negro dos guarda-sóis descendo a estrada.
Mas, a casa era da vovó. Chegava a hora de tomar o rumo da moradia da nova família. A viagem não era longa. Poucos quilômetros entre uma casa e outra.
Já em seu lar, a neném mamava no peito e depois só fazia dormir, enquanto a mãe esfregava a roupa na pedra do rio e estendia na cerca de arame farpado do potreiro.
O restante do dia era todo dedicado à casa. Um simples casebre de um quarto e cozinha. E nessa, o que, com mais idade e já andando, virou a atração da pequena e ruiva menina: um banco de madeira sempre bem escovado pela mãe, onde era guardado o balde d`água que vinha da vertente límpida e pura no meio da mata. Mergulhar a caneca de alumínio na água e deixá-la escorrer pelo corpo era sua pequena alegria.
Mas, no tempo da época, a menina era ainda um bebê. E, vinte dias depois do nascimento já enfrentava seu primeiro revés. Era o dia 16 de dezembro daquele ano. Dia do seu batismo. O domingo acordou luminoso e a pequena criança seguiu para a igreja no colo da mãe, na garupa de uma velha bicicleta guiada pelo pai.
A igreja ficava distante alguns quilômetros e não havia outro meio de transporte na família. No meio do caminho a surpresa: um grupo de amigos do pai à caminho da pescaria. O pai não teve dúvidas. Largou a criança e sua mãe na solitária estrada de terra e foi com os amigos. As duas seguiram sozinhas - as lágrimas da mãe escorrendo no rostinho da filha - o caminho da igreja para o batismo. A pequena criança tinha apenas vinte dias, mas já sofria seu primeiro abandono...
Talvez jamais soubesse do fato, não fosse a mágoa da mãe repetir-lhe a história de tempos em tempos.
E hoje, passados quase cinquenta anos, a história veio à tona outra vez... desta vez, na lembrança da menina, agora uma mulher...
Como as mágoas e feridas, quando não saradas, causam estragos na vida das pessoas. E quantos andam pelo mundo relembrando e repetindo histórias de abandono e dor que há muito já deviam ter sido esquecidas.
Mas elas estão lá. E de vez em quando sobem à tona deste imenso tonel de tristezas e dores bem fincadas que a gente guarda dentro do peito.
A uma pequena ferida somam-se outras mil e então o mundo desaba. Para onde andar quando nos deixamos vencer pelas lembranças tristes, pelas profundas mágoas e feridas bem fincadas que a vida nos outorga?
Sigo sempre meus passos em direção à cruz que me ensinou o perdão. Mas fica a pergunta: para onde vão aqueles que não conseguem conceder perdão? O que fazem com as mágoas e feridas que gangrenam no coração?